sábado, 24 de outubro de 2015

PRECISAMOS FALAR DE CULTURA DO SILÊNCIO



Valentina, menina de 12 anos, membra do elenco do Masterchef Jr., “desperta” os “instintos" pedófilos de vários criminosos na internet. As mulheres lançam a hashtag ‪#‎primeiroassedio‬. Dentre as reações à hashtag, várias bem óbvias: homens dizendo que mulheres gordas relatando assédio estão mentindo, homens fazendo falsa simetria e dizendo que também eram assediados por mulheres na infância, homens comparando assédio com levar um fora... Até aí, nada surpreendente.
Mas, uma reação que me surpreendeu, e não sei por quê, foi esta, do print:
Não sei por que me surpreendeu, já que vivemos em uma cultura do silêncio, quando se trata de pedofilia e de abuso e violência contra mulheres. Em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher! E o marido segue sendo abusivo, e a sociedade conivente, ao se manter em silêncio. Pode ser que aquela mulher sobreviva, viva até mais que o marido, e seja “feliz”. Pode ser que ela morra nas mãos dele. Não importa, porque em briga de marido e mulher...
Precisamos romper com esse ciclo de silêncio! Isso só beneficia os agressores, portanto, homens, em 95% dos casos. Segundo homens que pensam como o que escreveu esse post do print, mulheres não devem expor histórias de assédio, INCLUSIVE HISTÓRIAS QUE ACONTECERAM EM ESPAÇOS PÚBLICOS, em público! Chamar uma menina de 11 anos de gostosa, no meio da rua, e dizer que vai enfiar seu pênis nela, ok. Falar disso em público, nem pensar! Será que esse senhor não se dá conta da incoerência disso? E, mesmo as histórias que acontecem nos espaços privados – e acabam sendo piores, pois, nesses casos, os abusadores são os próprios pais, padastros, avôs, irmãos, primos e amigos da família da vítima – também devem ser expostas!
A cultura do silêncio é uma das armas para que a violência se perpetue. Romper com ela é o primeiro passo para que, senão mudar a cultura da pedofilia e do estupro, pelo menos minimizá-la. Muitos criminosos não têm vergonha na cara mesmo, e nem se importariam de ser expostos, já que sabem que, ainda assim, não serão punidos, pois têm certeza da impunidade. Mas, alguns, com certeza, ainda mantêm as aparências de “homens de bem” e o risco de exposição talvez os intimidasse e, assim, talvez tivéssemos menos vítimas. Para vocês verem a que ponto chegamos: já nem temos esperança de acabar com o problema, ou punir os culpados. Ficamos felizes em tentar, pelo menos, diminuir o número de vítimas!
Segundo esse senhor também, essas histórias de assédio são casos pra psicólogo! Óbvio, afinal toda mulher já nasce doida, né? Segundo ele, a mulher que se sentiu a vida toda incomodada com assédio, que talvez tenha se culpado por ele, e finalmente tem a oportunidade de se abrir na rede, deveria, novamente, se calar, e se abrir apenas com um profissional de saúde, afinal deve ser doença se incomodar com esse tipo de coisa, não é mesmo? Apenas um profissional de saúde, pago pra isso, deve ouvir essas histórias. E, sendo a psicologia um saber masculino e misógino (não toda ela atualmente, óbvio, mas na sua origem), cabe a ela “consertar” essa mulher “neurótica” e “histérica”, que expõe em público sua história de assédio. Ela sairá do consultório “curada” do SEU “problema”, e os homens, que só estão exercendo sua masculinidade, continuam com passe livre para isso. E, mais e mais mulheres, todos os dias, vão adoecendo com tanto abuso e tanto silêncio, fornecendo mais e mais pacientes pros psicólogos...
Não seria extrapolar muito acreditar que quem pensa assim é, ele mesmo, um abusador tentando se proteger. Se não é um dos inúmeros casos de tios que se aproveitavam de dar colo às sobrinhas pra se esfregar, deve ser um desses que chamam meninas de 12 anos de “gostosa” ou “linda” (afinal, linda é elogio!) nas ruas. E, se ele não é assediador, tá sendo broder dos manos, usando da broderagem pra proteger outros homens.
Muito assustador é ver várias mulheres concordando com isso! Afinal, roupa suja se lava em casa, outro ditado popular que só contribui para o silenciamento de vítimas de violência doméstica. Não culpo essas mulheres. Estão apenas agindo de acordo com nossa socialização, pela qual temos que ser conciliadoras, ou seja, devemos manter a família unida a qualquer custo, mesmo que esse custo seja nossa sanidade física e mental, e a de nossas meninas. Isso no caso de o assédio ter acontecido em família. E estão, novamente, apenas agindo de acordo com nossa socialização, ao protegerem homens em detrimento de meninas ou mulheres, pois aprendemos que 1. mulheres não são confiáveis (quem disse que esse assédio aconteceu mesmo?); 2. homens podem mudar (ele errou, mas não vai acontecer de novo); 3. mulheres devem perdoar (ele merece uma segunda chance); 4. homens são vítimas (ele não sabia o que estava fazendo; ela que provocou); 5. mulheres se culpam (a culpa não é dele, é minha, que confiei nele).
Também agem de acordo com a socialização as vítimas que se calam. Ao criticar a cultura do silêncio, em nenhum momento, devemos criticar essas vítimas. Existem inúmeros motivos para isso, todos justos, e o mais forte é, com certeza, a socialização feminina, além da própria cultura do silêncio criticada aqui. Criticar a vítima acaba sendo apenas mais uma maneira de calá-la. Cada vítima se abrirá quando e se quiser ou estiver preparada. Antes de criticar a vítima, faça um exercício de autocrítica e se pergunte: por que vítimas se calam? Por que o assédio não existiu? Ou por que, quando vítimas veem a público, são questionadas, duvida-se delas? Ou por que se desconfia da sanidade mental da vítima? Ou por que se culpabiliza a vítima? E agora o momento de autocrítica: quantas vezes você já fez essas coisas? Quantas vezes já disse será que aconteceu mesmo? Será que ela tá inventando? Quantas vezes já disse será que ela não é maluca? Quantas vezes já disse que aquela ali tava merecendo ou procurando, porque saiu sozinha à noite de minissaia? Ou porque ficou sozinha num lugar fechado com um homem estranho, ou mesmo conhecido? Duvido que você não tenha respondido “pelo menos uma vez” nas questões acima. Então, antes de responsabilizar a vítima que se cala, pense no seu papel nisso tudo.
Às vítimas, todo meu apoio. Saibam que, quando e se quiserem, estarei aqui para ouvir. A culpa não é sua. Nunca. Nem por ficar calada, se assim preferir. Só não se calem por acreditar em pessoas como esse senhor do print, porque isso seria assunto privado e limitado à esfera da medicina. Não, não é. Falem, gritem, exponham seus assediadores. Quando e se vocês quiserem.

LOBOS EM PELE DE CORDEIRO. HOMENS EM PELE DE PORCOS.

Desde ontem tenho visto várias mulheres compartilhando esta charge, e não vou mais conseguir me calar sobre ela...


Valentina não está sendo assediada por porcos (que se parecem com lobos, aliás)! Porcos são bichos lindos, cheirosos, inteligentes. Lobos também são bichos lindos. Nem porcos nem lobos ficam em pé em duas patas, como os da charge, nem usam facebook. Valentina está sendo assediada por homens! HO-MENS!

Ao retratar porcos/lobos a assediando, O cartunista desvia o foco da verdadeira crítica que tem que ser feita aqui: aos homens. HO-MENS!

Amigas, Vitor Teixeira é homem. HO-MEM! Embora não seja dos piores, embora, fora essa charge, eu não tenha achado mais nada dele tão problemático, ele ainda é homem. Homem que está fazendo um retumbante sucesso (vejam quantos likes e compartilhamentos no print) numa área em que mulheres não têm vez, uma das áreas mais misóginas possíveis, e onde cartunistas mulheres não conseguem reconhecimento. E ele está conquistando esse reconhecimento com base, também, em temas femininos e feministas. Eu não compartilho charges "feministas" dele, mesmo quando concordo com elas. E, nesse caso, não dá nem pra concordar!

Talvez porque não haja mulheres cartunistas, talvez por isso, tantas mulheres o compartilhem. Mas, isso só aumenta sua repercussão, consequentemente, tirando as chances de mulheres que estão batalhando pra entrarem/terem espaço nessa área. Mas, ao compartilhá-lo, só diminuímos as chances das mulheres invisíveis na área, só aumentamos a dificuldade para ELAS virem a ter sucesso falando de NOSSOS problemas.

Voltando a essa charge em questão aqui, mesmo sem perceber (talvez), o autor usou da típica broderagem masculina pra tirar o foco do fato que, como dito acima, quem está assediando Valentina são: HO-MENS! Não acho que ele tenha feito de propósito, mas isso nem vem ao caso. Homens, mesmo sem querer, defendem uns aos outros. Ele, talvez sem perceber, ao saber do caso Valentina, já quis tirar o seu corpo fora, e de outros homens também, colocando a culpa nos porcos/lobos.

Impossível não pensar em contos de fadas, e Chapeuzinho Vermelho. Já perceberam que, em TODOS os contos de fadas, homens ou são heróis ou não são homens? Homens ou são o príncipe que salva a mocinha indefesa, ou são o caçador que também salva a mocinha indefesa, ou aparecem na forma de gigantes, figuras irreais ou de lobos e outros animais! Chapeuzinho Vermelho é uma história que visa a alertar/culpabilizar meninas sobre as violências que podem sofrer. Mas, quantas meninas você conhece que foram comidas por lobos? E quantas vocês conhecem que foram “comidas” por homens mesmo? Pois é...

O último teste pra quem compartilhou isso é: deem uma olhada em quantos homens curtiram/comentaram esse cartum, e em quantos homens curtiram qualquer outra postagem sobre Valentina. Por exemplo, meu próprio texto, que mostrava que todos os homens contribuem com a situação de Valentina, foi amplamente divulgado e curtido. Por mulheres. Dos homens, só silêncio. Ou comentários do tipo #nemtodohomem. Mas, o cartum do Vitor Homem Teixeira teve o aval de vários homens também, porque eles não se reconhecem nos porcos do desenho. Não são eles. São OUTROS homens.

Porcos/Lobos não são pedófilos. Porcos/Lobos não ameaçam e estupram. Homens são pedófilos, ameaçam e estupram. HO-MENS!

Sobre o caso Valentina, do Master Chef Jr:

1. Vcs estão REALMENTE surpresas? 
2. Isso q alguns homens mais descarados tiveram coragem de postar no face eh só o q TODOS pensam (vamos dar uma margem de dúvida e dizer q 95%).
3. Sim, isso inclui os homens c quem vc convive todo dia. Sim, isso inclui seu pai, seu filho, seu marido. Meu pai e meu marido tbm. 
4. Novinha eh a palavra mais procurada em sites porno no Brasil. Sim, vc leu certo. Novinha.
5. Sim, os homens c quem vc convive todo dia consomem pornô de novinha. E novinha n eh 18, nem 16. Eh 12 mesmo. Se n for criança ainda mais jovem. 
6. Sim, seu pai, seu marido, seu filho consomem esse tipo de pornô.
7. Se vc conversar c eles e pedir p pararem, talvez eles até parem. Na sua frente. 
8. Ah! Tem tb os profs q ficam c as novinhas. Sabe aquele prof de história mto legal q vc gostava no 2o ano? Ele já "pegou" várias alunas novinhas. O diretor sabia e só disse p ele ter cuidado p ng descobrir. Mas todos sabem e ninguém faz nada.
Deu p entender aonde eu quero chegar? Ainda n? Todos os homens contribuem p isso. Vc contribui p isso qdo diz q a X, estuprada no CPII, sabia o q tava fazendo e queria sim. Vc contribui p isso qdo insiste q crianças têm poder de decisão p escolher ficar c homens adultos. Vc contribui p isso tbm.

ESTUPRADORES NÃO SÃO MONSTROS

Estupradores não são monstros. São homens. São pais, filhos, irmãos, maridos de mulheres como eu e você. Uma parcela ínfima dos estupradores são psicopatas, que vivem isolados da sociedade, e poderiam ser considerados “doentes” pela definição atual do que é ser doente. Sabe aquele que vive naquela casa estranha da rua, na casa que nenhuma criança gosta de passar na porta? Então, esses são uma parcela mínima da população de estupradores. A enorme maioria são homens comuns. Sabe o seu professor, aquele legal, que fala de política e amor livre? Sabe o seu médico, aquele que é gentil durante a consulta? Sabe o motorista do ônibus, aquele que te dá bom dia todo dia? Enfim, sabe todos os homens que passam diariamente pela sua vida? Então, estatisticamente uma parcela deles é, sim, de estupradores. Não posso nem precisar quantos por cento. Essa estatística não existe. Mas, saiba que, dentre o padeiro, o vendedor da loja de celular, o taxista, o amigo do sindicato, o pai da sua amiga, o primo da sua vizinha, o entregador das casas Bahia, o técnico da net, o advogado trabalhista que te ajudou naquela causa difícil, o médico especialista que foi o único que resolveu a dor nas costas da sua mãe... Enfim, dentre todos os homens com quem você convive diariamente, uma parcela deles é de: estupradores. Isso é estatisticamente inegável quando consideramos que, no Brasil, mais de 500 mil estupros acontecem todos os anos, e prevê-se que isso e apenas 10% dos casos totais, que são os que chegam à polícia. Ou seja, são cinco milhões de estupros por ano, 13 mil todos os dias.

Mas, eu não consigo imaginar meu professor/médico/motorista de ônibus atrás de uma moita esperando pra estuprar uma mulher na rua! E nem precisam. A enorme maioria dos estupros também não acontece assim. Estupros acontecem dentro de casa. Homens estupram as próprias esposas e filhas e enteadas. Estupros acontecem em locais de trabalho, entre chefes e empregadas, e entre colegas de trabalho. Estupros acontecem em consultórios médicos. Estupros acontecem em táxis. E, num país em que 65% da população concorda com a afirmação de que “dependendo das roupas que estiver usando, a mulher é CULPADA pelo próprio estupro”, não é difícil de entender que a enorme maioria não acontece atrás da moita, na rua escura. Nesse momento, alguma colega de classe sua está sendo estuprada pelo pai/padrasto/irmão. Ou pelo namorado, que a “convenceu” de que já está na hora de perder a virgindade. Nesse momento, alguma colega de trabalho sua está sendo estuprada pelo próprio marido. Nesse momento, pacientes estão sendo estupradas em consultórios. Alunas estão sendo estupradas pelos próprios professores (que fingem ignorar que sexo com menor de 14 anos é estupro EM QUALQUER CASO). Nesse momento, amigas estão sendo estupradas por “amigos” que não sabem ouvir não, e cresceram acreditando que quando mulher diz não quer dizer sim.


Mas, pra que esse alarmismo todo? Pra que assustar as mulheres com esses dados? Se os dados assustam, é porque mostram um problema grave. Mas, a função desse texto não é assustar ninguém, e sim alertar mulheres pra pararem de se referir a estupradores como monstros, porque isso só prejudica as vítimas. Que menina vai denunciar por estupro seu pai ou padastro, aquele homem de bem, pilar da sociedade, se ela só escutar, todo dia, que estupradores são monstros? Que aluna vai denunciar o professor premiado internacionalmente e admirado por todos na escola/faculdade, se ela sempre ouvir que estupradores são monstros? Chamar estupradores de monstros, ou de doentes, só colabora com a cultura do estupro e tira o foco, a culpa, a responsabilidade dos verdadeiros culpados: HO-MENS!  

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

EU NÃO SOU A FAVOR DO ABORTO

Eu não sou a favor do aborto. Eu sou a favor da descriminalização do aborto e, principalmente, das mulheres que abortam. Eu sou a favor da autonomia feminina nessa decisão, eu sou a favor do estado, e da religião, e outras instituições machistas, não mais legislarem sobre os corpos femininos. Se você acredita que ser contra a legalização do aborto é uma questão de ser a favor da vida, você está muito enganada. É uma questão de ser a favor de ou contra mulheres, e você, mulher, está contra você mesma nessa.

Mas, eu me cuido! Isso nunca vai acontecer comigo! Olha, a não ser que você seja celibatária com homens, você não pode dizer isso. Uma das primeiras falácias a serem desfeitas a respeito do aborto é que “mulheres que se cuidam” nunca vão precisar dele. O único cuidado infalível nesse caso é não fazer sexo com homens. E, ainda assim, você não estaria livre de ser estuprada e se ver nessa situação. Métodos anticoncepcionais não são 100% seguros, nenhum deles. E, embora a pílula, por exemplo, seja 97% segura, isso significa que de cada 100 mulheres que você conhece que tomam pílula, todo mês, três delas poderão engravidar, mesmo “se cuidando” muito bem. A camisinha é ainda menos segura. Então, muitas mulheres que “se cuidam” também se veem na situação de uma gravidez indesejada. São milhões no mundo todo, todos os meses, que “se cuidaram” direitinho e se encontram nessa situação.

Mas, é uma vida humana que você está assassinando! Bom, isso já é uma questão de crença. Segundo a ciência, não, um feto não é uma vida. Pode ser que isso vá contra as SUAS crenças, a sua religião. Então, nesse caso, não faça VOCÊ um aborto. Mas, outras mulheres não são obrigadas a concordar com isso, principalmente se não há qualquer evidência que comprove essa crença. Por mais difícil que seja pra você, com seus princípios, aceitar isso, ninguém é obrigada a concordar com você. Olha, não somos nem obrigadas a acreditar em Deus! Então, se é necessário pro feto estar dentro de MIM durante nove meses, cabe a mim decidir se EU vou querer que ele se desenvolva até se tornar, enfim, uma vida.

Além disso, esse argumento pró-vida cai por terra, quando sabemos que ninguém é obrigado por lei a salvar a vida de ninguém, mesmo que aquela pessoa seja a única possibilidade de salvação da outra. Se você for a única pessoa compatível com alguém, seja pra doar sangue, medula, um rim, parte do fígado, você não é obrigada a doar. Mesmo que os médicos e as autoridades saibam que a única chance de sobrevivência da outra pessoa seja a sua doação, não, você não poderá ser obrigada a doar nada, pra ninguém. Todos assistirão a outra pessoa morrendo, você mesma poderá assistir a outra pessoa morrendo, na sua frente, sabendo que você é a única chance de sobrevivência daquela outra pessoa, e, nem assim, ninguém poderá te obrigar a doar nada. Em resumo, o único órgão ou parte do corpo humano sobre o qual o estado pode legislar é o útero das mulheres. NENHUMA OUTRA PARTE DO CORPO sofre a legislação do estado, apenas o útero. Isso mostra que não é a vida que se protege, mas sim o corpo da mulher que se invade.

Mas, você só tá aqui pra dizer isso, porque tua mãe não te abortou. Óbvio, né? E nem por isso eu seria contra o direito de decisão da minha mãe, se ela tivesse me abortado. Eu simplesmente não existiria, não estaria aqui e pronto. E isso não seria nem bom, nem ruim, seria indiferente. Mas, grandes mulheres e homens poderiam não ter nascido! Tá, mas daí eu também posso dizer que homens e mulheres que foram péssimos pra humanidade também poderiam não ter nascido, o que invalida totalmente esse argumento do “o que aquele ser que não nasceu poderia ter sido”.

Mas, se descriminalizar, o número de abortos subirá muito! Isso é MENTIRA! As estatísticas indicam que a legalização leva a uma diminuição nos casos de aborto, como aconteceu recentemente no Uruguai, que descriminalizou o procedimento em 2012. Isso mostra que 1. mesmo ilegal, as mulheres que não quiserem ter um filho não terão. Elas farão o aborto ilegal, e colocarão a própria vida em risco, mas não terão um filho indesejado simplesmente porque o aborto é ilegal; 2. o argumento de que ser contra a legalização do aborto é ser a favor da vida também é uma mentira, já que menos abortos acontecem quando ele é legalizado e, além disso, menos mulheres morrem em procedimentos ilegais mal feitos. Ou seja, mais fetos se tornam vidas, e mais vidas de mulheres são poupadas. Isso ocorre porque, junto com a legalização do aborto, no caso do Uruguai, veio também uma lei de apoio e conscientização das mulheres que se candidatam ao aborto legal. Não é só chegar no hospital e fazer e ir pro shopping fazer compras depois. A mulher passa por uma série de profissionais de saúde, recebe todas as informações necessárias, e, só aí, decide se dará continuidade ao procedimento ou não. Então, não, não vai ter mulher fazendo aborto todo mês, como se diz por aí.

Sendo legal ou não, de graça ou não, não será mais fácil pra nenhuma mulher essa decisão, não se tornará algo que as mulheres gostarão de fazer, ou farão por diversão. Transplante de coração é legal, e nem por isso alguém curte ter que receber um coração novo, nem muito menos as pessoas saem por aí propositalmente fazendo mal ao próprio coração, só pra precisar de um transplante! Continuará existindo o estigma, as mulheres continuarão sendo discriminadas na sociedade, principalmente aquelas que praticam alguma religião monoteísta. Além disso, continuará existindo o peso da decisão, do “e se eu tivesse esse filho?”, o que ele poderia ser tornar etc. Continuará existindo o peso de uma decisão que afeta a vida de várias pessoas, e de um amontoado de células que poderia vir a ser uma pessoa. Me arrisco a dizer também que, mesmo legalizado, mulheres ainda passarão constrangimento, quando não violência mesmo, ao procurar um hospital para abortar. Hoje, já é assim, nos casos de aborto legal que existem no Brasil (em função de estupro, ou risco de vida para a mãe, ou caso de bebês anencéfalos, ou que já estão mortos dentro do útero). Em inúmeros casos, meninas e mulheres são novamente “estupradas” pelo sistema, quando enfermeiros e médicos duvidam de que elas tenham mesmo sido estupradas. Sofrem abuso verbal e, às vezes, violência física durante o procedimento. E isso não mudará da noite pro dia, se o aborto for legalizado em todos os casos. “Profissionais” de saúde irresponsáveis e anti-éticos continuarão agindo assim. Agem assim até com mulheres que chegam com hemorragia ao hospital, quer por um aborto espontâneo, quer por outros problemas no útero, só por pressuporem que a mulher é uma “vadia aborteira” que não merece respeito. Então, a legalização não trará a banalização do aborto, como se argumenta muitas vezes, porque ainda haverá muita violência e abuso envolvidos na realização de um aborto.

Principalmente, a descriminalização aumentará a igualdade de chances entre mulheres pobres, negras, periféricas e mulheres privilegiadas e brancas. Hoje em dia, são as pobres, negras e periféricas que mais morrem em abortos ilegais. Mulheres de condição financeira elevada podem pagar mais, o que não garante melhor atendimento, já que é tudo ilegal, mas em geral, sim, têm seus abortos feitos com mais respeito. Muitas vão até pro exterior, pra países onde o aborto é legal. Quem acaba morrendo em maior número, ou carregando sequelas pro resto da vida, são as mulheres que não têm essa chance. Então, ser contra a descriminalização do aborto é também uma atitude racista e classista.

Também diminuirá, com a descriminalização, a ação de quadrilhas ilegais que fazem abortos. Muitas dessas quadrilhas é formada por homens, que, muitas vezes, se declaram contra o aborto, afinal não querem perder a fonte de renda! Em geral, não estão nem aí pro direito da mulher, ou pro bem-estar dela. Só querem mesmo o dinheiro, que elas se virarão pra pagar. Qualquer coisa ilegal, aliás, acaba gerando um mercado paralelo, que não contribui com impostos, que “emprega” pessoas ilegalmente, e que explora “clientes”, que não têm a quem recorrer. E, no entanto, isso não impede que abortos continuem sendo feitos, e que pessoas inescrupulosas continuem enriquecendo às custas da ilegalidade. São quase um milhão de abortos, por ano, no Brasil. Façam por alto as contas pra ver quantos homens e mulheres estão enriquecendo ilegalmente nesse momento.

Se, com todos esses argumentos, você ainda é contra a descriminalização do aborto, pelo menos, tenha a decência de admitir que não tem nada a ver com “direito à vida” o seu posicionamento. Admita que você é, na verdade, contra mulheres terem poder de decisão sobre os próprios corpos.

Se você é homem, isso não é tão difícil de entender. Aliás, a enorme maioria daqueles que se dizem contra a legalização do aborto são homens. Afinal, mulheres que têm poder sobre si mesmas, e sobre seus corpos (até onde isso é possível, na nossa sociedade, o que nunca é um poder total), assustam os homens profundamente. Imagina o poder que mulheres teriam, enquanto classe, de controlar a reprodução humana, se não houvesse tantos tabus em torno dela! Mulheres controlando os filhos que nasceriam, e DE QUE HOMENS nasceriam filhos também! Esse é um poder que nenhum homem quer que mulheres tenham! Aliás, a base da exploração feminina, no nosso sistema de castas sexuais, é justamente a exploração da capacidade reprodutiva feminina, pelos homens, pra manter seu poder de casta superior. Essa exploração é fundamental pra manutenção do patriarcado e dos privilégios masculinos. Ah, mas alguns homens são a favor a descriminalização do aborto! Sim, e a maioria dos que se dizem a favor da legalização do aborto só o são, porque sabem que, um dia, podem precisar dele também, ao engravidar indesejadamente uma mulher. Muitos acreditam que, se o aborto for legal, será um direito DELES, e eles poderão OBRIGAR a mulher a abortar, ou poderão se recusar a assumir um filho que a mulher não quiser abortar, pois não veem o aborto como um direito das mulheres, nem conseguem conceber a autonomia feminina nesse nível!

Se você é mulher, e é contra a descriminalização, é compreensível também, pois somos socializadas, em primeiro lugar, pra odiar nossos corpos. Em segundo lugar, somos socializadas pra competir com outras mulheres e odiá-las, e pra colocar homens acima de outras mulheres, e consequentemente de nós mesmas, então quem aquela putinha aborteira acha que é, pra abortar “o filho do Fulano”? Além disso, somos também socializadas pra odiar mulheres que têm vida sexual “livre”, que fazem sexo por prazer. Em quarto lugar, somos socializadas pra não compreender mulheres que não querem ter filhos, pra as acharmos inferiores àquelas que os têm. Mas, pasmem, segundo pesquisa feita em 2010, pela UnB, 81% das mulheres que abortaram JÁ TÊM FILHOS! Aborto não é sinônimo de ódio a crianças, ou nenhuma demonização desse tipo. Enfim, se você é mulher e, mesmo sabendo de tudo que sabe agora, ainda é contra o direito de outras mulheres – e olha, é seu direito também, sabia, mesmo que, por motivos religiosos ou quaisquer que sejam, você jamais venha a exercê-lo –, reveja seus pensamentos, e procure entender se o que causa isso é mesmo um profundo senso de “direito à vida” ou, na verdade, misoginia internalizada tão fortemente, que você nem percebe que sua posição nesse caso não é fruto de “amor à vida” e sim de “ódio às mulheres” e, consequentemente, a você mesma.

Resumo da pesquisa realizada em 2010, pela UnB. 

Então, mulher, seja pessoalmente contra ou a favor do aborto, faça você um aborto ou não, mas seja a favor dos direitos das mulheres, acima de tudo. Seja a favor do fim do sequestro de nossos corpos, por um estado “laico”, controlado majoritariamente por homens e altamente influenciado pela religião. Enfim, seja a favor da vida das mulheres que morrem todos os dias em clínicas clandestinas, única e exclusivamente por ousarem querer mandar em seus próprios corpos. SEJA A FAVOR DA VIDA, SEJA A FAVOR DA DESCRIMINALIZAÇÃO!  

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

PRA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI DOS HOMENS

Semana passada, graças a um novo filósofo-humorista esquerdomacho pós-moderno, que vem reiteradamente fazendo piadas hilárias sobre o feminismo (incluindo “sobrancelhas de radfem” e “a única protagonista da luta deve ser a própria luta”), várias feministas perderam seu precioso tempo, 30% menos remunerado que o dos homens, pra explicar pela enésima vez pra um bando de macho branco privilegiado por que: homens não podem ser feministas. Homens podem até teorizar sobre feminismo, mas como não têm a vivência feminina, qualquer teoria que não leve essa vivência em conta, além de inútil, ainda costuma atrasar nossa luta.

Mas, não fiquem tristes. Esse é um espacinho, enquanto todo o resto do mundo lá fora é de vocês. Nem fiquem com medo da gente também, não. Somos poucas, pouquíssimas. A maioria das mulheres ainda tá presa a vocês, então, relaxem, vosso mundo não vai acabar tão cedo, nem vossos privilégios. A maior parte do feminismo também ainda baba o ovo de vocês, isso sem falar no Queer... Nós, as “radicais” (aqui entendidas como as feministas que se alinham ao feminismo radical, e também qualquer uma que exclua homens de sua prática e discurso), não temos poder nenhum, além de vos “silenciar” com um block no face. Mãe, ela me bloqueou! Buáááááá! Mas, nosso poder sobre vocês e seu mundo não vai além disso. Ufa (pra vocês)! E, vocês também nos bloqueiam quando ousamos discordar da vossa opinião de macho branco privilegiado, então, como a gente dizia na infância: pronto, empatou!

Segundo alguns, essa é uma atitude não acolhedora, que não visa a um mundo melhor e solidárizzzz... Exato! Porque feminismo não se trata de acolher ninguém que não seja mulher, nem visa a uma solidariedade abstrata que, no final das contas, só beneficia aos... homens brancos privilegiados! Feminismo é sobre mulheres, de mulheres, para mulheres. Indiretamente, feminismo também se trata de lutar contra o racismo, o classismo e outras opressões e preconceitos. MAS, feminismo não se trata jamais de dar (mais) voz àqueles que já são donos de 90% da voz neste mundo: homens brancos privilegiados. Não visamos a ser solidárias com nossos opressores, até porque eles não o foram conosco, e ainda não o são, há mais de 10 mil anos! E, se essa atitude, de colocar mulheres à frente e acima dos homens, levar esses mesmos homens a nos chamarem de fascistas (eufemismo pra evitar o clássico feminazi), ótimo: sinal de que estamos fazendo um bom trabalho!

Mas, pra não dizer que não falei dos homens, e pra aquelas que ainda acreditam em “como vamos mudar o mundo sem contar com metade da humanidade?”, e também pra aqueles que querem porque querem participar do feminismo, aí vai uma listinha básica de 10 coisas que todo homem privilegiado pode fazer pra contribuir com o feminismo:

1. CRITIQUE A MISOGINIA NAS OBRAS DOS HOMENS

Antes de falar merdas, como “give peace a chance” ajudou muito a humanidade, lembre-se de que John Lennon abusou de suas duas esposas e transformou a vida de Yoko num inferno. A rola, quer dizer, a pomba de Picasso também fez muito menos pela humanidade do que qualquer homem pode acreditar, mas garanto que arruinou a vida de diversas mulheres. E vou contar um segredo que você provavelmente não sabe: Gandhi, aquele pregador da paz, era estuprador, pedófilo, e deixou um legado de estupros que se perpetua na Índia até hoje (http://www.theguardian.com/commentisfree/2010/jan/27/mohandas-gandhi-women-india) → Foi um homem que escreveu, então deve ser verdade!

Ah, mas eu não misturo a obra com a vida particular dos artistas/estadistas! Óbvio, porque ninguém quer admitir que seu ídolo é um escroto. Então, nos limitemos a criticar apenas as obras mesmo, que têm tanta, mas tanta misoginia, que já seria suficiente pra uma vida inteira de críticas. Só duas dicas de por onde começar: letras do Chico Buarque e filmes do Woody Allen. Só isso já daria uma tese ou duas. Só pra começar a discussão, leiam http://observatoriofeminino.blog.br/cultura/sou-mulher-e-chico-buarque-me-compreende/#.VfhFbhFViko e http://tepergunteialgumacoisafeminista.blogspot.com.br/2015/07/para-mia-farrow-ou-vende-se-colecao-de.html.

2. LEIA, VEJA, ADMIRE OBRAS DE MULHERES

Paralelamente a criticar a misoginia de seus ídolos, dedique um mínimo de tempo a ler obras escritas por mulheres, a ver filmes feitos por mulheres (tão poucos!). Você pode até continuar venerando os machos que sempre venerou, mas se quer se dizer pró-feminista, você terá que abrir um mínimo de espaço pra mulheres em sua vida. Sugiro começar com uns 10%. A cada nove livros escritos por homens que você ler, leia um escrito por uma mulher. O mesmo pra filmes dirigidos por mulheres. Se você é professor, trabalhe essas obras com suas alunas e alunos. Se você é jornalista, publique sobre essas obras. Se você é bibliotecário, privilegie mulheres na hora de adquirir livros pra biblioteca. Se você é apenas leitor ou público, leia e veja mais obras de mulheres.

3. NÃO CRITIQUE A APARÊNCIA DE MULHERES FORA DO PADRÃO
Dizer que sua amiguinha está com “sobrancelhas de radfem” e depois se dizer pró-feminismo não cabe. Simplesmente, não cabe. Se você se diz pró-feminismo, a atitude correta é jamais oprimir uma mulher pela sua aparência, seja ela qual for. E isso vale inclusive pras mulheres que estão dentro do padrão, e acabam oprimidas por serem “bonitas demais”, e não terem sua inteligência reconhecida, por exemplo. Parem de olhar pra mulheres como pedaços de carne, sem cérebro. Escutem primeiro o que uma mulher tem a dizer, antes de verificar se ela tem pelos nas axilas, ou não faz as sobrancelhas.

E NUNCA digam que uma mulher que se recusa aos rituais de feminilidade é “masculina” ou quer se parecer “com um homem”. Recusar as amarras da opressão não significa querer se igualar ao opressor, muito pelo contrário. Significa estar ciente de que meu sexo é obrigado a rituais que o seu não é, e que eu recuso conscientemente esses rituais. Não usar maquiagem, não me depilar, usar roupas compradas na “seção masculina” não fazem de mim mais ou menos “masculina”, nem mais ou menos mulher, mas sim mais ou menos ocupada em agradar ao olhar masculino, que é o objetivo de todos esses rituais.

Mas, isso não dá a você, homem, o direito de novamente nos dividir em “umas e outras”, e só levar a sério mulheres que recusam a feminilidade. Mulheres se obrigam a esses rituais pelos mais variados motivos, e não cabe a você, homem, criticar as mulheres que se subordinam ou não. Não vincule o que uma mulher diz ao fato de ela se submeter aos rituais de feminilidade ou não. Uma mulher que usa maquiagem tem tanto a dizer quanto uma que não usa. Uma mulher que está em cima de um salto 15 tem tantas ideias quanto uma de tênis. Enfim, tente fazer como naquele programa de aspirantes a cantores, e ESCUTE a voz de mulheres, antes de verificar sua aparência, e encaixá-la nesta ou naquela caixinha.

Se você quiser se colocar no lugar das mulheres em relação aos rituais da feminilidade, leia essa pequena crônica: http://tepergunteialgumacoisafeminista.blogspot.com.br/2015/09/dois-pesos-duas-medidas.html.

Se quiser saber mais por que mulheres que recusam a feminilidade não são “masculinas”, leia: http://www.geledes.org.br/por-que-resistir-a-feminilidade-deveria-fazer-parte-de- nossas-lutas/?fb_ref=fa6678b893e842208ade3ceb7414c684-Facebook.

4. NÃO USE LINGUAGEM MISÓGINA
Quase todos os xingamentos usados, pra ofender tanto homens quanto mulheres, ofendem as mulheres, antes de mais nada. Filho da puta, corno, mulherzinha, viado, vai tomar no cu.

Mas, muitas mulheres usam! Sim, muitas usam. Já vi cena de seriado em que a irmã chamava o próprio irmão de filho da puta, ou seja, tava chamando a própria mãe de puta! Isso porque o irmão dela tinha estuprado a filha dela, ou seja, sobrinha dele. Muitas feministas mesmo, inclusive eu, têm dificuldade em mudar sua linguagem, mas com um esforço consciente, não é tão difícil, principalmente na linguagem escrita. Então, se policie pra evitar isso. A cada vez que você escrever “filho da mãe”, volte três casas e substitua por algo não misógino. Se for na fala e não der pra voltar atrás, se policie pra não acontecer de novo. Assim, devagar, sua linguagem vai mudando, sem muita dificuldade.

Mas, é tão difícil encontrar um palavrão não-misógino! Ótimo, sinal, então, de que você já entendeu como usá-los é problemático e vai parar com eles, né?

5. NÃO FAÇA E NÃO RIA DE PIADAS MACHISTAS

Mas, é só uma piada! Não, não é só uma piada. Piadas são parte do discurso usado pra naturalizar opressões, pra que coisas inventadas pareçam naturais ou biológicas. Mas, se você tem uma compulsão por fazer piadas, faça piadas assim, ó: “um homem branco rico entrou numa padaria...”, ou “um homem branco hetero e outro homem branco rico estavam em um barco...”.

Ah, mas aí não vai ter graça! Então, você admite que a graça está em debochar dos mais fracos, né? Logo, acho que você já entendeu por que não pode nem fazer, nem rir de piada machista.


6. NÃO CANTE MULHERES NA RUA, NEM AS COMA COM OS OLHOS

Homens não cantam mulheres na rua, ou as devoram com os olhos, como forma de elogio, ou mesmo por um verdadeiro interesse naquela mulher em específico. Tá, tudo bem que eu tenho uma ex-aluna que conheceu o marido no ônibus, mas isso é exceção. Na verdade, com cantadas de rua, homens estão dizendo pra aquela mulher “seu espaço é o doméstico e o meu é o público. O preço que tu pagas por 'invadir' meu espaço é esse”. É por isso, também, que se espalham nos bancos de ônibus, nos espremendo contra a parede. É por isso, também, que chefes se sentem no direito de cantar funcionárias. É por isso, também, que motoristas de táxi se sentem no direito de cantar passageiras. É por isso, também, que alunos se acham no direito de cantar professoras, e professores, alunas. E alunos também se sentem no direito de colocar suas mãos nas alunas o tempo todo, em sala de aula, no recreio etc. É o homem falando na cara da mulher “você está ocupando meu espaço, e eu vou fazer tudo que puder pra te expulsar do espaço público, de volta pro espaço privado, eu vou te fazer odiar seu próprio corpo, que 'atrai' essas cantadas, eu vou te fazer ter medo de mim toda vez que sair na rua”. E o estupro nada mais é que a consolidação máxima dessa mensagem. Então, sim, você que olha pra mulheres assim na rua tem muito em comum com um estuprador, sabia?

7. NÃO SEJA CAVALHEIRO

O cavalheirismo é, provavelmente, a forma mais sutil de um homem colocar uma mulher “no seu devido lugar”. É dizer bem baixinho, ao pé do ouvido, “você é tão inútil, que é incapaz de abrir a própria porta ou puxar a própria cadeira, você é um ser tão, mas tão inferior, que é incapaz de carregar a própria bolsa” ou “você é tão delicada e precisa da minha proteção, que não pode ouvir um palavrão, então, quando eu falo um na sua frente, eu peço desculpas”. Obviamente, não estou dizendo que todo homem que faz isso sabe que o está fazendo. Não é algo consciente, mas, sim, enfiado na cabeça deles desde cedo: “filho, quando uma moça for passar pela porta, você deve abrir pra ela, porque é isso que faz um cavalheiro”. Então, agora, que você já é adulto e já pode problematizar as besteiras que teu pai te falava, pare de ser cavalheiro. Respeite as mulheres como gente, em vez de as colocar num patamar inferior.

Isso não significa dizer que você não deve ser GENTIL. Gentileza e cavalheirismo são bem diferentes. E a diferença fundamental é: gentileza a gente faz com QUALQUER PESSOA, e cavalheirismo só com mulheres. Exemplo: se uma pessoa de 1,60 precisar pegar algo em cima do armário, você, com 1,80, deve ajudar. Mas, você deve fazer isso por qualquer ser humano de 1,60 e não apenas por mulheres de 1,60. Você pode continuar abrindo portas pra qualquer um, desde que seja PRA QUALQUER UM, e não apenas pra mulheres. Ajude os idosos, homens ou mulheres, ajude as crianças, homens ou mulheres. Ajude quem for, SEM SE COLOCAR NUMA POSIÇÃO SUPERIOR.

Mais sobre como o cavalheirismo é uma praga pras mulheres aqui: http://reginanavarro.blogosfera.uol.com.br/2013/05/04/o-cavalheirismo-e-nocivo-as-mulheres/.

8. NÃO CONSUMA PORNOGRAFIA OU PROSTITUIÇÃO

Pornografia e prostituição são duas facetas da cultura do estupro em que vivemos, que são, muitas vezes, consideradas inofensivas, e talvez por isso mesmo sejam tão perigosas. A pornografia ensina aos meninos, cada vez mais cedo, que mulheres gostam de ser mal tratadas e abusadas, e ensina isso às meninas também, o que é ainda pior! Assim, meninas crescem achando que, se não fizerem aquilo tudo, serão “trocadas” por outras que façam, crescem acreditando na falsa ideia de “liberdade sexual feminina”, que só beneficia aos... homens! Já os meninos crescem e viram homens que pagam prostitutas, pra cometer contra elas todo tipo de abuso que, muitas vezes, as namoradas ou esposas não estão dispostas a fazer. Ou, até estão, mas eles gostam de uma variedade também.

Sobre as consequências horrendas da pornografia pras meninas que estão iniciando a vida sexual, mais aqui: http://www.festivalmarginal.com.br/sexo/a-pornografia-tornou-o-panorama-da-adolescencia-irreconhecivel/.



9. NÃO ESTUPRE OU ABUSE DE MULHERES

Ah, mas isso é óbvio. Nem tanto... Não estou falando só daquele estupro em que o macho fica atrás de uma moita, esperando uma moça passar, na rua deserta, pra atacá-la. Em geral, esse tipo de estupro tem a crítica de vários homens também, quem diria! Tô falando daquele estupro mais sutil, daquele “amigo” que se aproveita da amiga bêbada na festa (quem mandou beber?), daquele “amigo” que se aproveita da amiga que resolveu dormir na casa dele, por ter medo de voltar pra casa tarde da noite (se dormiu na casa de homem, é porque tava querendo), daquele “amigo” que acha que “quando mulher diz não, tá querendo dizer sim”, daquele “namorado” que pressiona a namorada virgem pra transar porque ela “não é mais criança” e “ele tem necessidades”, enfim, todos esses estupros sutis do dia a dia.

E não falo apenas de abuso físico, que com esse muitos homens também não concordam. Falo daqueles abusos também sutis do dia a dia, do gaslaite, do mansplaining, e todos esses nomes difíceis em inglês, mas que, na verdade, descrevem problemas bem brasileiros mesmo; falo da manipulação psicológica que TODA mulher já sofreu e TODO homem já praticou, seja em relacionamento amorosos, ou de trabalho, amizades etc. Se você quer saber o que vocês fazem com as mulheres, muitas vezes sem nem perceber, mais aqui: http://www.cartacapital.com.br/blogs/escritorio-feminista/como-reconhecer-a-armadilha-de-um-relacionamento-abusivo-1323.html

10. ESCUTE AS MULHERES

Dizer que quer dialogar com as feministas radicais e bloqueá-las na net não é realmente uma abertura ao diálogo, né? Dizer que quer diálogo, quando, na verdade, quer impor sua opinião, também não é. Dizer que quer diálogo, mas em que só o lado privilegiado fala, em vez de escutar, também não é diálogo. Dizer que quer diálogo, mas explicar a mulheres sobre sua própria vivência, em vez de ESCUTAR o que elas têm a dizer sobre essa vivência, não, não é diálogo.

Um diálogo entre membros de classes diferentes deve ser pautado pelo lado opressor OUVIR o que o lado oprimido tem a dizer, antes de mais nada. Fazer perguntas sinceras, e não apenas capciosas, também deve ser parte desse diálogo. Ter paciência pra ouvir o outro lado, e pra aturar toda a sua raiva, também. A raiva que mulheres muitas vezes têm de homens é justificada, e não deve ser menosprezada pelos próprios causadores – direta ou indiretamente – dessa raiva.

E, quando uma mulher te excluir do debate sobre feminismo, JAMAIS diga que ela está te segregando, porque em nenhum lugar desse planeta, mulher tem poder pra segregar homem. Qualquer mulher tem o direito de excluir homens privilegiados de seus espaços, pois isso é uma estratégia de sobrevivência e manutenção da nossa sanidade mental. É pura falsa simetria se vitimizar e achar que você foi o excluído, a vítima. Ainda mais, se você pretende bloquear outras mulheres posteriormente, né, kiridinhu?

Aqui como homens não podem ser segregados por mulheres, não com base no gênero: http://www.festivalmarginal.com.br/inspiracao/feminismo-segrega-os-homens/

Então, amigo, ou ex-amigo (porque, no meio tempo em que escrevia esse texto, o ser humano do sexo masculino que o inspirou bloqueou todos os contatos comigo), que quer realmente AGIR em prol do feminismo, e não apenas APARECER às nossas custas, se você fizer metade dessas coisas, a gente já terá muito a agradecer (apesar de serem apenas ações decentes, que qualquer ser humano deveria fazer). Ah, não se esqueçam também da dica número

11. CRITIQUE SEUS AMIGOS QUE FIZEREM QUALQUER UMA DAS 10 COISAS ACIMA!

Xi, mas aí eu serei o chato do rolê! Será mesmo, e, se você não quer pagar nem esse pequeno preço, então, você acha mesmo que pode fazer parte do feminismo?

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

DOIS PESOS, DUAS MEDIDAS

Naquela manhã, ele acordou super atrasado. Se olhou no espelho e pensou “ou faço a barba, ou perco o ônibus” e, como não podia chegar atrasado na prova, não fez a barba. Chegou a pensar em usar um lenço cobrindo o rosto, mas estava muito calor, então, saiu assim mesmo.

O ônibus estava lotado, e ele não sabia se se segurava ou tentava cobrir o rosto com o braço, porque os olhares começaram a incomodar. Acabou resolvendo se segurar, mas abaixou bem o rosto pra ninguém ter que ver aquela vergonha na cara dele.

Foi mal na prova, porque os colegas e o professor também não paravam de encarar. Ainda tentou comprar uma lâmina no caminho pro trabalho, mas não deu tempo. Então, foi assim mesmo. Péssima decisão. Era melhor ter chegado atrasado.

Logo na recepção, deu de cara com a chefe, que o olhou com cara de nojo. Antes do almoço, foi chamado pra uma reunião sobre sua aparência. Já não era a primeira vez que aparecia sem fazer a barba, e numa empresa daquele porte, isso não pode ser tolerado, pois, afinal, os clientes reparam, e o cliente tem sempre razão. Se acontecesse novamente, seria demitido.

Depois do trabalho, saiu pro happy hour com os amigos, e achou que poderia desabafar com eles, mas ledo engano. Todos concordaram com a chefe, de que aquilo era falta de higiene, e ele deveria acordar mais cedo, e ser mais cuidadoso com a aparência.

Foi pra casa, chateado, achando que a esposa seria mais compreensiva, mas a reação foi igual ou pior que a dos amigos. Ainda colocou a culpa nele por uma possível futura demissão, que iria prejudicar a vida financeira do casal, e disse que não iria segurar as pontas. Se ele fosse demitido, ela se separaria, que ela não tá ali pra sustentar vagabundo desempregado.

E foram dormir sem sexo, porque a esposa tava com nojo daquela cara não depilada.

SE ESSA HISTÓRIA NÃO FAZ O MENOR SENTIDO PRA VOCÊ, POR QUE A HISTÓRIA ABAIXO FAZ? 



Naquela manhã, ela acordou super atrasada. Se olhou no espelho e pensou “ou raspo as axilas e as pernas, ou perco o ônibus” e, como não podia chegar atrasada na prova, não raspou as axilas nem as pernas. Chegou a pensar em usar uma blusa de mangas e calça comprida, mas estava muito calor, então, usou um vestido leve sem mangas, q ia até o joelho.

O ônibus estava lotado, e ela não sabia se se segurava ou se abaixava os braços, porque os olhares começaram a incomodar (pelo menos, assim, ninguém via suas pernas). Acabou resolvendo se segurar, mas abaixou bem o rosto pra ninguém ter que ver que estava morrendo de vergonha.

Foi mal na prova, porque os colegas e o professor também não paravam de encarar. Ainda tentou comprar uma lâmina no caminho pro trabalho, mas não deu tempo. Então, foi assim mesmo. Péssima decisão. Era melhor ter chegado atrasada.

Logo na recepção, deu de cara com o chefe, que a olhou com cara de nojo. Antes do almoço, foi chamada pra uma reunião sobre sua aparência. Já não era a primeira vez que aparecia sem depilar as axilas e/ou as pernas, e numa empresa daquele porte, isso não pode ser tolerado, pois, afinal, os clientes reparam, e o cliente tem sempre razão. Se acontecesse novamente, seria demitida.

Depois do trabalho, saiu pro happy hour com as amigas, e achou que poderia desabafar com elas, mas ledo engano. Todas concordaram com o chefe, de que aquilo era falta de higiene, e ela deveria acordar mais cedo, e ser mais cuidadosa com a aparência.

Foi pra casa, chateada, achando que o marido seria mais compreensivo, mas a reação foi igual ou pior que a das amigas. Ainda colocou a culpa nela por uma possível futura demissão, que iria prejudicar a vida financeira do casal, e disse que não iria segurar as pontas. Se ela fosse demitida, ele se separaria, que ele não tá ali pra sustentar vagabunda desempregada.


E foram dormir sem sexo, porque o marido (barbudo e peludo) tava com nojo da buceta não depilada.  

domingo, 23 de agosto de 2015

JOGO DOS 7000 ERROS: 27-29


ERRO NÚMERO 27: MULHER NÃO É NECESSARIAMENTE LOUCA

Toda mulher já foi um dia chamada de louca. E não é aquele “nossa, pulou de bungee jump. Você é louca?!” Não. É o “nossa, chora à toa, se desespera à toa, que louca”. Ser mulher e ser louca, na nossa sociedade, são quase sinônimos. Além do absurdo que é usar a palavra louca assim, irresponsavelmente, pois loucura é, na verdade, um problema sério, tem algo ainda mais grave aí. A naturalização da loucura feminina. Fazem-nos pensar que somos realmente loucas, e não que são os outros que nos veem assim.

Veem-nos como loucas em situações nas quais homens não são chamados de loucos. Por exemplo, mulher que chora demais é chamada de louca; homem que chora é sensível. Mulher que grita é chamada de louca; homem que grita sabe o que quer, é assertivo. E, como no post, em relacionamentos amorosos, sempre somos tachadas de loucas, não importa o que fizermos. A louca é sempre a mulher; o herói que atura isso, o homem. Engraçado é observar que quem mata a parceira por terminar o relacionamento é o homem. Mas, a mulher que é louca. Quem mata os próprios filhos “por amor” é o homem. Mas, a mulher que é louca. Quem quase sempre recorre à violência, contra os outros e até contra si mesmo, é o homem. Mas, a mulher que é louca. Acho que precisamos revisar essa noção de loucura, hein!

Cena do filme Gaslight, de 1944

Um bom exemplo de como a loucura dos homens é transferida às mulheres é o gaslaite, aportuguesamento do inglês gaslight. Gaslight é o nome de um filme, de 1944 (por sua vez, adaptado da peça Gas Light, de 1938), estrelado por Ingrid Bergman e um cara lá, como um casal recém-casado. O marido manipula a personagem da Ingrid, levando-a a acreditar que está ficando louca. Para isso, ele faz as luzes a gás da casa acenderem e apagarem sozinhas (daí, o título Gaslight). O nome passou a ser usado pra se referir à estratégia de manipular outros para acharem que estão loucos, ou ainda para se culparem por algo cuja culpa não é sua (e é geralmente daquele que pratica o gaslaite). E, frequentemente, o praticante do gaslaite é um homem, e a vítima, uma mulher, não só em relacionamentos amorosos, mas em outros tipos de relação também. Um exemplo bem simples de gaslaite, retirado da página Quadrinhos da Emília:


(https://www.facebook.com/ADecenaTragica/photos/pb.229694163834361.-2207520000.1440355999./660605877409852/?type=1)

Isso acontece diariamente na vida de toda mulher que se relaciona com homens, e muitas não percebem, porque nossa socialização é voltada pra nos culparmos por tudo, enquanto a socialização de homens é pra transferirem sua culpa pra outro/as. Então, a dinâmica da transferência funciona muito bem quando um homem faz gaslaite contra uma mulher, e mesmo quando uma mulher o usa contra outra, mas dificilmente quando uma mulher tenta usá-lo contra um homem.

Aliás, outro exemplo de gaslaite é o próprio meme do post, dizendo que homens que toleram mulheres loucas e complicadas são heróis, quando sabemos que, na maioria das vezes, são mulheres que toleram homens loucos, com o agravante que a loucura masculina frequentemente se concretiza em atos violentos contra a mulher, enquanto a “loucura” feminina dificilmente chega a esse ponto. Então, ao compartilhar isso, você contribui, sem ou por querer, com ou sem benefício próprio, pra ideia de que toda mulher é louca e de que todo homem é herói.

ERRO NÚMERO 28: MULHER NÃO É COMPLICADA

Ser mulher e ser complicada também andam juntos na visão que a sociedade patriarcal tem da mulher. Mas, o que faz de uma mulher complicada? Será que somos complicadas mesmo, ou somos julgadas assim, pra que nossas vontades não sejam respeitadas?

Uma breve busca no Google Images pela expressão “mulher complicada” mostra que essa ideia remete à mulher que dá ordens demais; à mulher que tem um guarda-roupa cheio, mas diz que não tem o que vestir; à mulher que questiona o marido; e ao clássico mulher de TPM, dentre outros. Em comum: todos são generalizações misóginas. Mulher que dá ordens demais: mulher não tem poder sobre homem pra dar ordem, exceto se for mãe de menino, enquanto ele ainda é pequeno. Então, mulheres só repetem seus pedidos (e não ordens) aos homens mil vezes, porque não são ouvidas nas primeiras 999 vezes. Pode ser a coisa mais banal, como dar descarga na privada, ou coisas sérias, como não deixar as crianças brincarem com armas de fogo carregadas, homens não escutam mulheres e, por isso, mulheres se repetem e se repetem e se repetem... Mulher que tem um guarda-roupa cheio, mas diz que não tem o que vestir: homens não são tão julgados pelo que vestem quanto mulheres, logo não precisam de tantas roupas e tantas combinações de roupas e acessórios etc e tal. Um apresentador de telejornal australiano experimentou passar um ano usando o mesmo terno, variando apenas as gravatas, e ninguém reparou! Se a apresentadora a seu lado tentasse algo parecido, nem chegaria ao final de um ano, porque seria demitida antes. Então, não dá pra criticar uma mulher por não ter o que vestir, quando sabemos que todos os olhos estarão voltados pra julgá-la, se ela repetir uma roupa, ou mesmo um acessório. Mulher que questiona o marido: acho que esse nem precisava explicar, mas lá vai... Homens acreditam que qualquer pergunta que a esposa lhe faça é uma invasão, mas não consideram que estão invadindo a privacidade da esposa ao fazer as mesmas perguntas. Isso se dá porque homens se veem como sujeitos, e veem mulheres como objetos. Então, desde quando um objeto pode questionar alguma coisa a um sujeito? Mas o contrário, tudo bem. Mulher de TPM: nem toda mulher tem TPM, eu mesma não tenho. Atribuir qualquer alteração de humor da mulher à TPM é dizer que “mulheres em seu estado normal” não podem se exaltar, devem ser calmas e submissas o tempo todo. A exceção é durante a TPM, onde podem ser “loucas”, devido à biologia. Mulheres não são bonecas que não têm emoções e, portanto, a TPM é irrelevante quando nos expressamos mais agressivamente. Perguntar/Insinuar que a mulher tá na TPM é misoginia, pois supõe que só nesse estado podemos mudar de humor.

Esses são apenas alguns exemplos de como a complicação de mulheres lhes é atribuída em função da misoginia. Assim como esses, são milhares de exemplos de “complicações”, que podem ser descomplicadas com uma rápida problematização como acima.


ERRO NÚMERO 29: HOMEM NÃO É HERÓI POR “ATURAR” MULHER

Se é uma falácia que mulheres são sempre loucas e complicadas, consequentemente, também é falso que homens que “aturam” essas mulheres são heróis, como fica implícito no meme. A verdade é que, muitas vezes, o homem é o causador da “loucura” e da “complicação” da mulher e não merece elogio nenhum. E é o gênero homem também o responsável pela invenção e naturalização da loucura e complicação do gênero mulher, então, novamente, não merecem elogio nenhum. Engraçado que, na maioria das vezes, a mulher apanha, tem sua privacidade invadida, sofre com ciúmes doentios, sofre gaslaite, mas o homem que é o herói! Se tem alguém aturando alguém aqui, é o contrário, é a mulher que atura muita coisa dos homens. Então, mulheres, reescrevam esse meme assim: “Namore um homem que não a transforme em uma louca complicada”! E parem de elogiar homens pelo que eles não merecem. 

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

ERRO NÚMERO 26: MULHER NÃO TEM PODER SOBRE HOMEM


Mulher nenhuma tem poder sobre homem, não por ser mulher. Isso deveria ser óbvio, já que vivemos em uma sociedade patriarcal, mas ainda tem que ser dito, então, vamos lá. Vivemos em um sistema de gêneros, em que o gênero masculino se beneficia, e o feminino é explorado, pro benefício do gênero masculino. Na verdade, vivemos em um sistema de castas sexuais, mas, pra efeito de simplificação, fiquemos com o termo sistema de gênero mesmo.

Por outro lado, homens têm poder sobre mulheres, inclusive o poder de as enlouquecer. Homens manipulam mulheres, usam de gaslaite (ou gaslighting, em inglês, que seria, resumidamente, fazer o outro acreditar que está louco, ou fazer o outro acreditar que é culpado de algo, quando não o é – e geralmente o culpado é quem fez o gaslaite.), fazem chantagem emocional. Ah, mas mulheres fazem isso tudo também! Sim, tentam, mas, como mulheres não têm poder sobre homens, e o contrário sim, é falsa simetria dizer que é a mesma coisa.

Quando mulheres tentam manipular homens, fazer gaslaite ou chantagem emocional, isso não tem sobre homens o mesmo peso que quando homens fazem isso conosco. Exatamente porque não temos sobre eles o poder que eles têm sobre nós. Se um namorado diz que a namorada tá gorda, isso não tem o mesmo peso (sem trocadilhos) que uma mulher dizer que o namorado está gordo, porque estar fora dos padrões é muito mais difícil pra mulheres, somos muito mais cobradas. Se um homem diz que vai se separar da esposa (mesmo não tendo verdadeira intenção), isso tem muito mais peso sobre a mulher do que ela dizer que vai se separar do marido, porque mulheres aprendem que precisam de um homem, mas homens não precisam de uma mulher. Em geral, uma mulher vai fazer qualquer coisa quando o marido ameaçar se separar, enquanto o contrário raramente acontece. Se um homem tenta colocar numa mulher a culpa por algo que é culpa dele, a mulher aceitará essa culpa muito mais facilmente que um homem, porque somos socializadas pra nos culparmos mesmo por tudo, por todos os problemas do mundo.

Mas a prima da minha vizinha manipula o marido direitinho! Não se trata de uma situação individual, de esta ou aquela mulher conseguirem ter feito isso com esse ou aquele homem, mas de uma questão de classe – ou casta. Você pode até dizer que a prima da sua vizinha manipula direitinho o marido, não importa. Eu até acredito que algumas mulheres tenham sucesso individual em manipular homens, mas essa não é a norma na nossa sociedade, como afirma o post. A norma é homens fazerem isso com mulheres. É isso que é normalizado pra parecer natural, é naturalizado pra que a gente não se revolte. Em outras palavras, quando uma mulher tenta manipular um homem, ela é imediatamente acusada de manipuladora, mas homens manipulam mulheres diariamente em coisas que são consideradas “naturais” e, por isso, não são questionadas. Quem nunca ouviu a célebre frase “homem é assim mesmo”?

Exemplo: um homem trai a esposa e as hipóteses que a sociedade tece são: 1. ela é frígida ou ruim de cama; 2. alguma mulher o seduziu e ele não resistiu; 3. homem tem mais instinto natural pra trair, porque precisa mais de sexo que mulher, ou seja, homem não se controla. Uma mulher trai o marido e as hipóteses que a sociedade tece são: 1. ela é safada e não presta. Ou seja, das quatro hipóteses, a culpa é de uma mulher em três. E a quarta hipótese, embora não culpe a mulher, retira a culpa do homem. Assim, naturalizamos a noção de que “mulheres são más e homens são indefesos”, logo são as mulheres que enlouquecem os homens. Mas, se observarmos a história, a sociedade, a política, em tudo, é o contrário que prevalece.


Então, não, mulheres não enlouquecem homens, seja de raiva ou de amor. Aliás, quando um homem diz que está “louco de amor”, em geral, ele fica “louco” porque não consegue controlar aquela mulher, ou porque ela não quer nada com ele. No final das contas, não tem nada a ver com amor, mas com posse, propriedade, aquilo que todos os homens acham que podem ter sobre todas as mulheres. A não ser que elas já “pertençam” a outros homens, porque homem respeita a propriedade de outros. Outros homens, óbvio.  

domingo, 2 de agosto de 2015

JOGO DOS 7000 ERROS - 24-25


ERRO NÚMERO 24: ESTUPRO NÃO É PIADA

Acho que não precisava nem dizer essa também, mas vamos lá: fazer piada com estupro não pode e pronto. Não há qualquer argumento neste universo, e nem em nenhum universo paralelo onde o Flash possa viver, que sirva pra defender piada de estupro.

Mas, é só uma piada! Não, não é. Não existe “só uma piada”. Piadas são feitas, dentre outras coisas, pra naturalizar preconceitos. Não é por acaso que apenas grupos “minoritários” são alvo de piadas. Alguém já viu alguma piada começando com: um homem branco hetero entrou num bar...? Não, né? As únicas vezes em que são feitas piadas com o opressor são nas piadas de português feitas pelos brasileiros. Mas, de resto, as piadas são sempre feitas com os oprimidos. Não por acaso, a enorme maioria de comediantes é de homens brancos e heteros, que fazem piadas com mulheres e outros grupos. E ai daquele membro da classe oprimida que reclamar: será tachado de mal humorado. Por isso, muitos se calam. Por isso também, muitos até “riem junto”, pra parecerem descolados e bem humorados. Muitas vezes, pra ganhar uma migalha de simpatia do opressor, assim contribuindo pra sua própria opressão, através de piadinhas “inocentes”, que transformam diferenças em inferioridades.

No caso específico da piada aqui, é a típica piada de estupro, feita por homens, desde “gênios” como Woody Allen (em mais de um filme), até “humoristas” como Rafinha Bastos, passando por quase todos os homens do mundo. Homens não veem problema em fazer piada com estupro por um motivo muito simples: não são jamais eles que sofrerão as consequências da naturalização do estupro. Eles sempre estão do mesmo lado dessa piada, do lado do Flash, no caso. Eles nunca estão do lado da Mulher Maravilha.

Ah, mas homens também são estuprados! Ok, momento “pra não dizer que não falei dos homens”. Não tenho estatísticas aqui, mas certamente o número de vítimas de estupro homens não chega a 20%. Se tirarmos as crianças, então esse número diminui muito. Se tirarmos os homens portadores de deficiência, diminuirá mais ainda. Se tirarmos os que se encontram no sistema carcerário, mais ainda. As chances de um homem branco hetero e de classe alta ser estuprado é quase nula. Enquanto isso, as chances de uma mulher ser estuprada são sempre enormes, e maiores ainda se ela for criança, negra, pobre, portadora de deficiência. Do outro lado, mais de 90% dos estupradores são homens. Então, não, não me venha com falsa simetria, dizendo que homens também são estuprados, porque os poucos que são só são, porque “sobrou” pra eles um resquício da misoginia que a gente sofre todo dia.

Em geral, a maioria dos homens, mesmo os que não estupram, se beneficiam da cultura do estupro. Se beneficiam do medo que mulheres têm de andar sozinhas, pra estar sempre ao lado das namoradas/esposas (mas eles podem sair sozinhos sem problemas) e pra determinar o que elas podem vestir. Se beneficiam controlando suas filhas com mão de ferro, com a desculpa de que as estão defendendo de outros homens, quando, na verdade, só querem manter sua propriedade quietinha dentro de casa pra não dar trabalho. Se beneficiam quando se envolvem com mulheres que já foram estupradas e, devido ao trauma, podem ser mais submissas e manipuláveis. E quanto aos benefícios da cultura do estupro pra estupradores, então, acho que não preciso nem listar, né?

Se, ainda assim, você continuar achando que é “só uma piada” e que piadas não têm esse poder todo, então, não compartilhe essas coisas por outro motivo: empatia com as vítimas de estupro. São mais de 50 mil casos por ano, no Brasil. Casos relatados. Se considerarmos que muitos casos ainda não são relatados, que muitas mulheres sofrem caladas, então seriam muitos mais. Isso dá uma mulher sendo estuprada a cada dez minutos! Apenas no Brasil. Por volta de 1/5 das mulheres em idade adulta já foi estuprada. Você, homem, pode ter certeza: dentre as mulheres que você conhece, que estão adicionadas no seu face, sua mãe, irmãs, primas, amigas, colegas, dentre elas, pense que uma em cada 5 já passou por isso. Pense que elas verão essa piadinha na sua TL, e pense que, ainda que você não acredite que piadas naturalizam opressões, ver isso no face não faz nada bem pras mulheres que já passaram por esse trauma, faz com que elas revivam o trauma, faz com que elas se sintam novamente indefesas (afinal, até o pai, filho, primo, amigo posta piadinha sobre estupro no face). E, principalmente, faz com que elas minimizem a própria dor, porque afinal, se algo é tão banalizado a ponto de ser motivo de piada, ela que é fresca de estar sofrendo com isso, né?

ERRO NÚMERO 25: VIRGINDADE NÃO É PIADA

Tudo que foi dito acima, sobre piadas em geral, vale aqui também. Além disso, a especificidade agora é a virgindade, e não o estupro, algo que também só diz respeito às mulheres.

Ah, que isso! Homem também perde a virgindade! Não, não é só porque homens usam esse termo, “perder a virgindade”, que ele se refere a eles. Em primeiro lugar, homens não perdem nada quando fazem sexo pela primeira vez. Literalmente, eles não perdem nada mesmo, porque não têm um hímen, uma parte do corpo, que é usada pra determinar se eles já fizeram sexo ou não. Não que esse método seja eficaz pra determinar a virgindade de mulheres também, porque algumas não têm hímen, outras têm o complacente, outras o rompem antes mesmo de fazer sexo, de propósito ou sem querer, e outras optam por fazer sexo sem penetração (sim, existe sexo sem penetração, e não deixa de ser sexo por isso). E, no sentido figurado, homens também não perdem nada na primeira vez. Não perdem seu valor de “homens de respeito”. Não saem da lista dos “pra casar” em direção à lista dos “pra trepar”. Enfim, a virgindade masculina não é tabu e dificilmente é usada contra o homem.

Além disso, o que o Flash não sabe é que, mesmo sendo estuprada por ele, a Mulher Maravilha não deixou de ser virgem. Estupro não é sexo consensual, logo a mulher estuprada não deixa de ser virgem. Aquilo que ele fez com ela foi uma violência, não foi sexo, não foi a primeira vez dela, foi um momento que ela só vai querer esquecer. Muitos meninos adolescentes não sabem distinguir sexo de estupro. Em uma pesquisa feita com universitários americanos (http://www.independent.co.uk/news/world/americas/a-third-of-male-university-students-say-they-would-rape-a-woman-if-there-no-were-no-consequences-9978052.html), 31% deles disse que forçaria uma mulher a fazer sexo, se não houvesse consequências, enquanto apenas 13% disse que estupraria uma mulher. Ou seja, na cabeça de 18% de todos os universitários entrevistados “forçar uma mulher a fazer sexo” e “estuprar” são coisas diferentes! O que será que eles consideram estupro?!


Tendo em mente o que eles consideram “piada”, dá pra ter uma ideia do que imaginam sobre o resto do mundo!