Valentina, menina de 12 anos, membra do elenco do Masterchef Jr., “desperta” os “instintos" pedófilos de vários criminosos na internet. As mulheres lançam a hashtag #primeiroassedio. Dentre as reações à hashtag, várias bem óbvias: homens dizendo que mulheres gordas relatando assédio estão mentindo, homens fazendo falsa simetria e dizendo que também eram assediados por mulheres na infância, homens comparando assédio com levar um fora... Até aí, nada surpreendente.
Mas, uma reação que me surpreendeu, e não sei por quê, foi esta, do print:
Não sei por que me surpreendeu, já que vivemos em uma cultura do silêncio, quando se trata de pedofilia e de abuso e violência contra mulheres. Em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher! E o marido segue sendo abusivo, e a sociedade conivente, ao se manter em silêncio. Pode ser que aquela mulher sobreviva, viva até mais que o marido, e seja “feliz”. Pode ser que ela morra nas mãos dele. Não importa, porque em briga de marido e mulher...
Precisamos romper com esse ciclo de silêncio! Isso só beneficia os agressores, portanto, homens, em 95% dos casos. Segundo homens que pensam como o que escreveu esse post do print, mulheres não devem expor histórias de assédio, INCLUSIVE HISTÓRIAS QUE ACONTECERAM EM ESPAÇOS PÚBLICOS, em público! Chamar uma menina de 11 anos de gostosa, no meio da rua, e dizer que vai enfiar seu pênis nela, ok. Falar disso em público, nem pensar! Será que esse senhor não se dá conta da incoerência disso? E, mesmo as histórias que acontecem nos espaços privados – e acabam sendo piores, pois, nesses casos, os abusadores são os próprios pais, padastros, avôs, irmãos, primos e amigos da família da vítima – também devem ser expostas!
A cultura do silêncio é uma das armas para que a violência se perpetue. Romper com ela é o primeiro passo para que, senão mudar a cultura da pedofilia e do estupro, pelo menos minimizá-la. Muitos criminosos não têm vergonha na cara mesmo, e nem se importariam de ser expostos, já que sabem que, ainda assim, não serão punidos, pois têm certeza da impunidade. Mas, alguns, com certeza, ainda mantêm as aparências de “homens de bem” e o risco de exposição talvez os intimidasse e, assim, talvez tivéssemos menos vítimas. Para vocês verem a que ponto chegamos: já nem temos esperança de acabar com o problema, ou punir os culpados. Ficamos felizes em tentar, pelo menos, diminuir o número de vítimas!
Segundo esse senhor também, essas histórias de assédio são casos pra psicólogo! Óbvio, afinal toda mulher já nasce doida, né? Segundo ele, a mulher que se sentiu a vida toda incomodada com assédio, que talvez tenha se culpado por ele, e finalmente tem a oportunidade de se abrir na rede, deveria, novamente, se calar, e se abrir apenas com um profissional de saúde, afinal deve ser doença se incomodar com esse tipo de coisa, não é mesmo? Apenas um profissional de saúde, pago pra isso, deve ouvir essas histórias. E, sendo a psicologia um saber masculino e misógino (não toda ela atualmente, óbvio, mas na sua origem), cabe a ela “consertar” essa mulher “neurótica” e “histérica”, que expõe em público sua história de assédio. Ela sairá do consultório “curada” do SEU “problema”, e os homens, que só estão exercendo sua masculinidade, continuam com passe livre para isso. E, mais e mais mulheres, todos os dias, vão adoecendo com tanto abuso e tanto silêncio, fornecendo mais e mais pacientes pros psicólogos...
Não seria extrapolar muito acreditar que quem pensa assim é, ele mesmo, um abusador tentando se proteger. Se não é um dos inúmeros casos de tios que se aproveitavam de dar colo às sobrinhas pra se esfregar, deve ser um desses que chamam meninas de 12 anos de “gostosa” ou “linda” (afinal, linda é elogio!) nas ruas. E, se ele não é assediador, tá sendo broder dos manos, usando da broderagem pra proteger outros homens.
Muito assustador é ver várias mulheres concordando com isso! Afinal, roupa suja se lava em casa, outro ditado popular que só contribui para o silenciamento de vítimas de violência doméstica. Não culpo essas mulheres. Estão apenas agindo de acordo com nossa socialização, pela qual temos que ser conciliadoras, ou seja, devemos manter a família unida a qualquer custo, mesmo que esse custo seja nossa sanidade física e mental, e a de nossas meninas. Isso no caso de o assédio ter acontecido em família. E estão, novamente, apenas agindo de acordo com nossa socialização, ao protegerem homens em detrimento de meninas ou mulheres, pois aprendemos que 1. mulheres não são confiáveis (quem disse que esse assédio aconteceu mesmo?); 2. homens podem mudar (ele errou, mas não vai acontecer de novo); 3. mulheres devem perdoar (ele merece uma segunda chance); 4. homens são vítimas (ele não sabia o que estava fazendo; ela que provocou); 5. mulheres se culpam (a culpa não é dele, é minha, que confiei nele).
Também agem de acordo com a socialização as vítimas que se calam. Ao criticar a cultura do silêncio, em nenhum momento, devemos criticar essas vítimas. Existem inúmeros motivos para isso, todos justos, e o mais forte é, com certeza, a socialização feminina, além da própria cultura do silêncio criticada aqui. Criticar a vítima acaba sendo apenas mais uma maneira de calá-la. Cada vítima se abrirá quando e se quiser ou estiver preparada. Antes de criticar a vítima, faça um exercício de autocrítica e se pergunte: por que vítimas se calam? Por que o assédio não existiu? Ou por que, quando vítimas veem a público, são questionadas, duvida-se delas? Ou por que se desconfia da sanidade mental da vítima? Ou por que se culpabiliza a vítima? E agora o momento de autocrítica: quantas vezes você já fez essas coisas? Quantas vezes já disse será que aconteceu mesmo? Será que ela tá inventando? Quantas vezes já disse será que ela não é maluca? Quantas vezes já disse que aquela ali tava merecendo ou procurando, porque saiu sozinha à noite de minissaia? Ou porque ficou sozinha num lugar fechado com um homem estranho, ou mesmo conhecido? Duvido que você não tenha respondido “pelo menos uma vez” nas questões acima. Então, antes de responsabilizar a vítima que se cala, pense no seu papel nisso tudo.
Às vítimas, todo meu apoio. Saibam que, quando e se quiserem, estarei aqui para ouvir. A culpa não é sua. Nunca. Nem por ficar calada, se assim preferir. Só não se calem por acreditar em pessoas como esse senhor do print, porque isso seria assunto privado e limitado à esfera da medicina. Não, não é. Falem, gritem, exponham seus assediadores. Quando e se vocês quiserem.