sábado, 24 de outubro de 2015

PRECISAMOS FALAR DE CULTURA DO SILÊNCIO



Valentina, menina de 12 anos, membra do elenco do Masterchef Jr., “desperta” os “instintos" pedófilos de vários criminosos na internet. As mulheres lançam a hashtag ‪#‎primeiroassedio‬. Dentre as reações à hashtag, várias bem óbvias: homens dizendo que mulheres gordas relatando assédio estão mentindo, homens fazendo falsa simetria e dizendo que também eram assediados por mulheres na infância, homens comparando assédio com levar um fora... Até aí, nada surpreendente.
Mas, uma reação que me surpreendeu, e não sei por quê, foi esta, do print:
Não sei por que me surpreendeu, já que vivemos em uma cultura do silêncio, quando se trata de pedofilia e de abuso e violência contra mulheres. Em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher! E o marido segue sendo abusivo, e a sociedade conivente, ao se manter em silêncio. Pode ser que aquela mulher sobreviva, viva até mais que o marido, e seja “feliz”. Pode ser que ela morra nas mãos dele. Não importa, porque em briga de marido e mulher...
Precisamos romper com esse ciclo de silêncio! Isso só beneficia os agressores, portanto, homens, em 95% dos casos. Segundo homens que pensam como o que escreveu esse post do print, mulheres não devem expor histórias de assédio, INCLUSIVE HISTÓRIAS QUE ACONTECERAM EM ESPAÇOS PÚBLICOS, em público! Chamar uma menina de 11 anos de gostosa, no meio da rua, e dizer que vai enfiar seu pênis nela, ok. Falar disso em público, nem pensar! Será que esse senhor não se dá conta da incoerência disso? E, mesmo as histórias que acontecem nos espaços privados – e acabam sendo piores, pois, nesses casos, os abusadores são os próprios pais, padastros, avôs, irmãos, primos e amigos da família da vítima – também devem ser expostas!
A cultura do silêncio é uma das armas para que a violência se perpetue. Romper com ela é o primeiro passo para que, senão mudar a cultura da pedofilia e do estupro, pelo menos minimizá-la. Muitos criminosos não têm vergonha na cara mesmo, e nem se importariam de ser expostos, já que sabem que, ainda assim, não serão punidos, pois têm certeza da impunidade. Mas, alguns, com certeza, ainda mantêm as aparências de “homens de bem” e o risco de exposição talvez os intimidasse e, assim, talvez tivéssemos menos vítimas. Para vocês verem a que ponto chegamos: já nem temos esperança de acabar com o problema, ou punir os culpados. Ficamos felizes em tentar, pelo menos, diminuir o número de vítimas!
Segundo esse senhor também, essas histórias de assédio são casos pra psicólogo! Óbvio, afinal toda mulher já nasce doida, né? Segundo ele, a mulher que se sentiu a vida toda incomodada com assédio, que talvez tenha se culpado por ele, e finalmente tem a oportunidade de se abrir na rede, deveria, novamente, se calar, e se abrir apenas com um profissional de saúde, afinal deve ser doença se incomodar com esse tipo de coisa, não é mesmo? Apenas um profissional de saúde, pago pra isso, deve ouvir essas histórias. E, sendo a psicologia um saber masculino e misógino (não toda ela atualmente, óbvio, mas na sua origem), cabe a ela “consertar” essa mulher “neurótica” e “histérica”, que expõe em público sua história de assédio. Ela sairá do consultório “curada” do SEU “problema”, e os homens, que só estão exercendo sua masculinidade, continuam com passe livre para isso. E, mais e mais mulheres, todos os dias, vão adoecendo com tanto abuso e tanto silêncio, fornecendo mais e mais pacientes pros psicólogos...
Não seria extrapolar muito acreditar que quem pensa assim é, ele mesmo, um abusador tentando se proteger. Se não é um dos inúmeros casos de tios que se aproveitavam de dar colo às sobrinhas pra se esfregar, deve ser um desses que chamam meninas de 12 anos de “gostosa” ou “linda” (afinal, linda é elogio!) nas ruas. E, se ele não é assediador, tá sendo broder dos manos, usando da broderagem pra proteger outros homens.
Muito assustador é ver várias mulheres concordando com isso! Afinal, roupa suja se lava em casa, outro ditado popular que só contribui para o silenciamento de vítimas de violência doméstica. Não culpo essas mulheres. Estão apenas agindo de acordo com nossa socialização, pela qual temos que ser conciliadoras, ou seja, devemos manter a família unida a qualquer custo, mesmo que esse custo seja nossa sanidade física e mental, e a de nossas meninas. Isso no caso de o assédio ter acontecido em família. E estão, novamente, apenas agindo de acordo com nossa socialização, ao protegerem homens em detrimento de meninas ou mulheres, pois aprendemos que 1. mulheres não são confiáveis (quem disse que esse assédio aconteceu mesmo?); 2. homens podem mudar (ele errou, mas não vai acontecer de novo); 3. mulheres devem perdoar (ele merece uma segunda chance); 4. homens são vítimas (ele não sabia o que estava fazendo; ela que provocou); 5. mulheres se culpam (a culpa não é dele, é minha, que confiei nele).
Também agem de acordo com a socialização as vítimas que se calam. Ao criticar a cultura do silêncio, em nenhum momento, devemos criticar essas vítimas. Existem inúmeros motivos para isso, todos justos, e o mais forte é, com certeza, a socialização feminina, além da própria cultura do silêncio criticada aqui. Criticar a vítima acaba sendo apenas mais uma maneira de calá-la. Cada vítima se abrirá quando e se quiser ou estiver preparada. Antes de criticar a vítima, faça um exercício de autocrítica e se pergunte: por que vítimas se calam? Por que o assédio não existiu? Ou por que, quando vítimas veem a público, são questionadas, duvida-se delas? Ou por que se desconfia da sanidade mental da vítima? Ou por que se culpabiliza a vítima? E agora o momento de autocrítica: quantas vezes você já fez essas coisas? Quantas vezes já disse será que aconteceu mesmo? Será que ela tá inventando? Quantas vezes já disse será que ela não é maluca? Quantas vezes já disse que aquela ali tava merecendo ou procurando, porque saiu sozinha à noite de minissaia? Ou porque ficou sozinha num lugar fechado com um homem estranho, ou mesmo conhecido? Duvido que você não tenha respondido “pelo menos uma vez” nas questões acima. Então, antes de responsabilizar a vítima que se cala, pense no seu papel nisso tudo.
Às vítimas, todo meu apoio. Saibam que, quando e se quiserem, estarei aqui para ouvir. A culpa não é sua. Nunca. Nem por ficar calada, se assim preferir. Só não se calem por acreditar em pessoas como esse senhor do print, porque isso seria assunto privado e limitado à esfera da medicina. Não, não é. Falem, gritem, exponham seus assediadores. Quando e se vocês quiserem.

LOBOS EM PELE DE CORDEIRO. HOMENS EM PELE DE PORCOS.

Desde ontem tenho visto várias mulheres compartilhando esta charge, e não vou mais conseguir me calar sobre ela...


Valentina não está sendo assediada por porcos (que se parecem com lobos, aliás)! Porcos são bichos lindos, cheirosos, inteligentes. Lobos também são bichos lindos. Nem porcos nem lobos ficam em pé em duas patas, como os da charge, nem usam facebook. Valentina está sendo assediada por homens! HO-MENS!

Ao retratar porcos/lobos a assediando, O cartunista desvia o foco da verdadeira crítica que tem que ser feita aqui: aos homens. HO-MENS!

Amigas, Vitor Teixeira é homem. HO-MEM! Embora não seja dos piores, embora, fora essa charge, eu não tenha achado mais nada dele tão problemático, ele ainda é homem. Homem que está fazendo um retumbante sucesso (vejam quantos likes e compartilhamentos no print) numa área em que mulheres não têm vez, uma das áreas mais misóginas possíveis, e onde cartunistas mulheres não conseguem reconhecimento. E ele está conquistando esse reconhecimento com base, também, em temas femininos e feministas. Eu não compartilho charges "feministas" dele, mesmo quando concordo com elas. E, nesse caso, não dá nem pra concordar!

Talvez porque não haja mulheres cartunistas, talvez por isso, tantas mulheres o compartilhem. Mas, isso só aumenta sua repercussão, consequentemente, tirando as chances de mulheres que estão batalhando pra entrarem/terem espaço nessa área. Mas, ao compartilhá-lo, só diminuímos as chances das mulheres invisíveis na área, só aumentamos a dificuldade para ELAS virem a ter sucesso falando de NOSSOS problemas.

Voltando a essa charge em questão aqui, mesmo sem perceber (talvez), o autor usou da típica broderagem masculina pra tirar o foco do fato que, como dito acima, quem está assediando Valentina são: HO-MENS! Não acho que ele tenha feito de propósito, mas isso nem vem ao caso. Homens, mesmo sem querer, defendem uns aos outros. Ele, talvez sem perceber, ao saber do caso Valentina, já quis tirar o seu corpo fora, e de outros homens também, colocando a culpa nos porcos/lobos.

Impossível não pensar em contos de fadas, e Chapeuzinho Vermelho. Já perceberam que, em TODOS os contos de fadas, homens ou são heróis ou não são homens? Homens ou são o príncipe que salva a mocinha indefesa, ou são o caçador que também salva a mocinha indefesa, ou aparecem na forma de gigantes, figuras irreais ou de lobos e outros animais! Chapeuzinho Vermelho é uma história que visa a alertar/culpabilizar meninas sobre as violências que podem sofrer. Mas, quantas meninas você conhece que foram comidas por lobos? E quantas vocês conhecem que foram “comidas” por homens mesmo? Pois é...

O último teste pra quem compartilhou isso é: deem uma olhada em quantos homens curtiram/comentaram esse cartum, e em quantos homens curtiram qualquer outra postagem sobre Valentina. Por exemplo, meu próprio texto, que mostrava que todos os homens contribuem com a situação de Valentina, foi amplamente divulgado e curtido. Por mulheres. Dos homens, só silêncio. Ou comentários do tipo #nemtodohomem. Mas, o cartum do Vitor Homem Teixeira teve o aval de vários homens também, porque eles não se reconhecem nos porcos do desenho. Não são eles. São OUTROS homens.

Porcos/Lobos não são pedófilos. Porcos/Lobos não ameaçam e estupram. Homens são pedófilos, ameaçam e estupram. HO-MENS!

Sobre o caso Valentina, do Master Chef Jr:

1. Vcs estão REALMENTE surpresas? 
2. Isso q alguns homens mais descarados tiveram coragem de postar no face eh só o q TODOS pensam (vamos dar uma margem de dúvida e dizer q 95%).
3. Sim, isso inclui os homens c quem vc convive todo dia. Sim, isso inclui seu pai, seu filho, seu marido. Meu pai e meu marido tbm. 
4. Novinha eh a palavra mais procurada em sites porno no Brasil. Sim, vc leu certo. Novinha.
5. Sim, os homens c quem vc convive todo dia consomem pornô de novinha. E novinha n eh 18, nem 16. Eh 12 mesmo. Se n for criança ainda mais jovem. 
6. Sim, seu pai, seu marido, seu filho consomem esse tipo de pornô.
7. Se vc conversar c eles e pedir p pararem, talvez eles até parem. Na sua frente. 
8. Ah! Tem tb os profs q ficam c as novinhas. Sabe aquele prof de história mto legal q vc gostava no 2o ano? Ele já "pegou" várias alunas novinhas. O diretor sabia e só disse p ele ter cuidado p ng descobrir. Mas todos sabem e ninguém faz nada.
Deu p entender aonde eu quero chegar? Ainda n? Todos os homens contribuem p isso. Vc contribui p isso qdo diz q a X, estuprada no CPII, sabia o q tava fazendo e queria sim. Vc contribui p isso qdo insiste q crianças têm poder de decisão p escolher ficar c homens adultos. Vc contribui p isso tbm.

ESTUPRADORES NÃO SÃO MONSTROS

Estupradores não são monstros. São homens. São pais, filhos, irmãos, maridos de mulheres como eu e você. Uma parcela ínfima dos estupradores são psicopatas, que vivem isolados da sociedade, e poderiam ser considerados “doentes” pela definição atual do que é ser doente. Sabe aquele que vive naquela casa estranha da rua, na casa que nenhuma criança gosta de passar na porta? Então, esses são uma parcela mínima da população de estupradores. A enorme maioria são homens comuns. Sabe o seu professor, aquele legal, que fala de política e amor livre? Sabe o seu médico, aquele que é gentil durante a consulta? Sabe o motorista do ônibus, aquele que te dá bom dia todo dia? Enfim, sabe todos os homens que passam diariamente pela sua vida? Então, estatisticamente uma parcela deles é, sim, de estupradores. Não posso nem precisar quantos por cento. Essa estatística não existe. Mas, saiba que, dentre o padeiro, o vendedor da loja de celular, o taxista, o amigo do sindicato, o pai da sua amiga, o primo da sua vizinha, o entregador das casas Bahia, o técnico da net, o advogado trabalhista que te ajudou naquela causa difícil, o médico especialista que foi o único que resolveu a dor nas costas da sua mãe... Enfim, dentre todos os homens com quem você convive diariamente, uma parcela deles é de: estupradores. Isso é estatisticamente inegável quando consideramos que, no Brasil, mais de 500 mil estupros acontecem todos os anos, e prevê-se que isso e apenas 10% dos casos totais, que são os que chegam à polícia. Ou seja, são cinco milhões de estupros por ano, 13 mil todos os dias.

Mas, eu não consigo imaginar meu professor/médico/motorista de ônibus atrás de uma moita esperando pra estuprar uma mulher na rua! E nem precisam. A enorme maioria dos estupros também não acontece assim. Estupros acontecem dentro de casa. Homens estupram as próprias esposas e filhas e enteadas. Estupros acontecem em locais de trabalho, entre chefes e empregadas, e entre colegas de trabalho. Estupros acontecem em consultórios médicos. Estupros acontecem em táxis. E, num país em que 65% da população concorda com a afirmação de que “dependendo das roupas que estiver usando, a mulher é CULPADA pelo próprio estupro”, não é difícil de entender que a enorme maioria não acontece atrás da moita, na rua escura. Nesse momento, alguma colega de classe sua está sendo estuprada pelo pai/padrasto/irmão. Ou pelo namorado, que a “convenceu” de que já está na hora de perder a virgindade. Nesse momento, alguma colega de trabalho sua está sendo estuprada pelo próprio marido. Nesse momento, pacientes estão sendo estupradas em consultórios. Alunas estão sendo estupradas pelos próprios professores (que fingem ignorar que sexo com menor de 14 anos é estupro EM QUALQUER CASO). Nesse momento, amigas estão sendo estupradas por “amigos” que não sabem ouvir não, e cresceram acreditando que quando mulher diz não quer dizer sim.


Mas, pra que esse alarmismo todo? Pra que assustar as mulheres com esses dados? Se os dados assustam, é porque mostram um problema grave. Mas, a função desse texto não é assustar ninguém, e sim alertar mulheres pra pararem de se referir a estupradores como monstros, porque isso só prejudica as vítimas. Que menina vai denunciar por estupro seu pai ou padastro, aquele homem de bem, pilar da sociedade, se ela só escutar, todo dia, que estupradores são monstros? Que aluna vai denunciar o professor premiado internacionalmente e admirado por todos na escola/faculdade, se ela sempre ouvir que estupradores são monstros? Chamar estupradores de monstros, ou de doentes, só colabora com a cultura do estupro e tira o foco, a culpa, a responsabilidade dos verdadeiros culpados: HO-MENS!  

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

EU NÃO SOU A FAVOR DO ABORTO

Eu não sou a favor do aborto. Eu sou a favor da descriminalização do aborto e, principalmente, das mulheres que abortam. Eu sou a favor da autonomia feminina nessa decisão, eu sou a favor do estado, e da religião, e outras instituições machistas, não mais legislarem sobre os corpos femininos. Se você acredita que ser contra a legalização do aborto é uma questão de ser a favor da vida, você está muito enganada. É uma questão de ser a favor de ou contra mulheres, e você, mulher, está contra você mesma nessa.

Mas, eu me cuido! Isso nunca vai acontecer comigo! Olha, a não ser que você seja celibatária com homens, você não pode dizer isso. Uma das primeiras falácias a serem desfeitas a respeito do aborto é que “mulheres que se cuidam” nunca vão precisar dele. O único cuidado infalível nesse caso é não fazer sexo com homens. E, ainda assim, você não estaria livre de ser estuprada e se ver nessa situação. Métodos anticoncepcionais não são 100% seguros, nenhum deles. E, embora a pílula, por exemplo, seja 97% segura, isso significa que de cada 100 mulheres que você conhece que tomam pílula, todo mês, três delas poderão engravidar, mesmo “se cuidando” muito bem. A camisinha é ainda menos segura. Então, muitas mulheres que “se cuidam” também se veem na situação de uma gravidez indesejada. São milhões no mundo todo, todos os meses, que “se cuidaram” direitinho e se encontram nessa situação.

Mas, é uma vida humana que você está assassinando! Bom, isso já é uma questão de crença. Segundo a ciência, não, um feto não é uma vida. Pode ser que isso vá contra as SUAS crenças, a sua religião. Então, nesse caso, não faça VOCÊ um aborto. Mas, outras mulheres não são obrigadas a concordar com isso, principalmente se não há qualquer evidência que comprove essa crença. Por mais difícil que seja pra você, com seus princípios, aceitar isso, ninguém é obrigada a concordar com você. Olha, não somos nem obrigadas a acreditar em Deus! Então, se é necessário pro feto estar dentro de MIM durante nove meses, cabe a mim decidir se EU vou querer que ele se desenvolva até se tornar, enfim, uma vida.

Além disso, esse argumento pró-vida cai por terra, quando sabemos que ninguém é obrigado por lei a salvar a vida de ninguém, mesmo que aquela pessoa seja a única possibilidade de salvação da outra. Se você for a única pessoa compatível com alguém, seja pra doar sangue, medula, um rim, parte do fígado, você não é obrigada a doar. Mesmo que os médicos e as autoridades saibam que a única chance de sobrevivência da outra pessoa seja a sua doação, não, você não poderá ser obrigada a doar nada, pra ninguém. Todos assistirão a outra pessoa morrendo, você mesma poderá assistir a outra pessoa morrendo, na sua frente, sabendo que você é a única chance de sobrevivência daquela outra pessoa, e, nem assim, ninguém poderá te obrigar a doar nada. Em resumo, o único órgão ou parte do corpo humano sobre o qual o estado pode legislar é o útero das mulheres. NENHUMA OUTRA PARTE DO CORPO sofre a legislação do estado, apenas o útero. Isso mostra que não é a vida que se protege, mas sim o corpo da mulher que se invade.

Mas, você só tá aqui pra dizer isso, porque tua mãe não te abortou. Óbvio, né? E nem por isso eu seria contra o direito de decisão da minha mãe, se ela tivesse me abortado. Eu simplesmente não existiria, não estaria aqui e pronto. E isso não seria nem bom, nem ruim, seria indiferente. Mas, grandes mulheres e homens poderiam não ter nascido! Tá, mas daí eu também posso dizer que homens e mulheres que foram péssimos pra humanidade também poderiam não ter nascido, o que invalida totalmente esse argumento do “o que aquele ser que não nasceu poderia ter sido”.

Mas, se descriminalizar, o número de abortos subirá muito! Isso é MENTIRA! As estatísticas indicam que a legalização leva a uma diminuição nos casos de aborto, como aconteceu recentemente no Uruguai, que descriminalizou o procedimento em 2012. Isso mostra que 1. mesmo ilegal, as mulheres que não quiserem ter um filho não terão. Elas farão o aborto ilegal, e colocarão a própria vida em risco, mas não terão um filho indesejado simplesmente porque o aborto é ilegal; 2. o argumento de que ser contra a legalização do aborto é ser a favor da vida também é uma mentira, já que menos abortos acontecem quando ele é legalizado e, além disso, menos mulheres morrem em procedimentos ilegais mal feitos. Ou seja, mais fetos se tornam vidas, e mais vidas de mulheres são poupadas. Isso ocorre porque, junto com a legalização do aborto, no caso do Uruguai, veio também uma lei de apoio e conscientização das mulheres que se candidatam ao aborto legal. Não é só chegar no hospital e fazer e ir pro shopping fazer compras depois. A mulher passa por uma série de profissionais de saúde, recebe todas as informações necessárias, e, só aí, decide se dará continuidade ao procedimento ou não. Então, não, não vai ter mulher fazendo aborto todo mês, como se diz por aí.

Sendo legal ou não, de graça ou não, não será mais fácil pra nenhuma mulher essa decisão, não se tornará algo que as mulheres gostarão de fazer, ou farão por diversão. Transplante de coração é legal, e nem por isso alguém curte ter que receber um coração novo, nem muito menos as pessoas saem por aí propositalmente fazendo mal ao próprio coração, só pra precisar de um transplante! Continuará existindo o estigma, as mulheres continuarão sendo discriminadas na sociedade, principalmente aquelas que praticam alguma religião monoteísta. Além disso, continuará existindo o peso da decisão, do “e se eu tivesse esse filho?”, o que ele poderia ser tornar etc. Continuará existindo o peso de uma decisão que afeta a vida de várias pessoas, e de um amontoado de células que poderia vir a ser uma pessoa. Me arrisco a dizer também que, mesmo legalizado, mulheres ainda passarão constrangimento, quando não violência mesmo, ao procurar um hospital para abortar. Hoje, já é assim, nos casos de aborto legal que existem no Brasil (em função de estupro, ou risco de vida para a mãe, ou caso de bebês anencéfalos, ou que já estão mortos dentro do útero). Em inúmeros casos, meninas e mulheres são novamente “estupradas” pelo sistema, quando enfermeiros e médicos duvidam de que elas tenham mesmo sido estupradas. Sofrem abuso verbal e, às vezes, violência física durante o procedimento. E isso não mudará da noite pro dia, se o aborto for legalizado em todos os casos. “Profissionais” de saúde irresponsáveis e anti-éticos continuarão agindo assim. Agem assim até com mulheres que chegam com hemorragia ao hospital, quer por um aborto espontâneo, quer por outros problemas no útero, só por pressuporem que a mulher é uma “vadia aborteira” que não merece respeito. Então, a legalização não trará a banalização do aborto, como se argumenta muitas vezes, porque ainda haverá muita violência e abuso envolvidos na realização de um aborto.

Principalmente, a descriminalização aumentará a igualdade de chances entre mulheres pobres, negras, periféricas e mulheres privilegiadas e brancas. Hoje em dia, são as pobres, negras e periféricas que mais morrem em abortos ilegais. Mulheres de condição financeira elevada podem pagar mais, o que não garante melhor atendimento, já que é tudo ilegal, mas em geral, sim, têm seus abortos feitos com mais respeito. Muitas vão até pro exterior, pra países onde o aborto é legal. Quem acaba morrendo em maior número, ou carregando sequelas pro resto da vida, são as mulheres que não têm essa chance. Então, ser contra a descriminalização do aborto é também uma atitude racista e classista.

Também diminuirá, com a descriminalização, a ação de quadrilhas ilegais que fazem abortos. Muitas dessas quadrilhas é formada por homens, que, muitas vezes, se declaram contra o aborto, afinal não querem perder a fonte de renda! Em geral, não estão nem aí pro direito da mulher, ou pro bem-estar dela. Só querem mesmo o dinheiro, que elas se virarão pra pagar. Qualquer coisa ilegal, aliás, acaba gerando um mercado paralelo, que não contribui com impostos, que “emprega” pessoas ilegalmente, e que explora “clientes”, que não têm a quem recorrer. E, no entanto, isso não impede que abortos continuem sendo feitos, e que pessoas inescrupulosas continuem enriquecendo às custas da ilegalidade. São quase um milhão de abortos, por ano, no Brasil. Façam por alto as contas pra ver quantos homens e mulheres estão enriquecendo ilegalmente nesse momento.

Se, com todos esses argumentos, você ainda é contra a descriminalização do aborto, pelo menos, tenha a decência de admitir que não tem nada a ver com “direito à vida” o seu posicionamento. Admita que você é, na verdade, contra mulheres terem poder de decisão sobre os próprios corpos.

Se você é homem, isso não é tão difícil de entender. Aliás, a enorme maioria daqueles que se dizem contra a legalização do aborto são homens. Afinal, mulheres que têm poder sobre si mesmas, e sobre seus corpos (até onde isso é possível, na nossa sociedade, o que nunca é um poder total), assustam os homens profundamente. Imagina o poder que mulheres teriam, enquanto classe, de controlar a reprodução humana, se não houvesse tantos tabus em torno dela! Mulheres controlando os filhos que nasceriam, e DE QUE HOMENS nasceriam filhos também! Esse é um poder que nenhum homem quer que mulheres tenham! Aliás, a base da exploração feminina, no nosso sistema de castas sexuais, é justamente a exploração da capacidade reprodutiva feminina, pelos homens, pra manter seu poder de casta superior. Essa exploração é fundamental pra manutenção do patriarcado e dos privilégios masculinos. Ah, mas alguns homens são a favor a descriminalização do aborto! Sim, e a maioria dos que se dizem a favor da legalização do aborto só o são, porque sabem que, um dia, podem precisar dele também, ao engravidar indesejadamente uma mulher. Muitos acreditam que, se o aborto for legal, será um direito DELES, e eles poderão OBRIGAR a mulher a abortar, ou poderão se recusar a assumir um filho que a mulher não quiser abortar, pois não veem o aborto como um direito das mulheres, nem conseguem conceber a autonomia feminina nesse nível!

Se você é mulher, e é contra a descriminalização, é compreensível também, pois somos socializadas, em primeiro lugar, pra odiar nossos corpos. Em segundo lugar, somos socializadas pra competir com outras mulheres e odiá-las, e pra colocar homens acima de outras mulheres, e consequentemente de nós mesmas, então quem aquela putinha aborteira acha que é, pra abortar “o filho do Fulano”? Além disso, somos também socializadas pra odiar mulheres que têm vida sexual “livre”, que fazem sexo por prazer. Em quarto lugar, somos socializadas pra não compreender mulheres que não querem ter filhos, pra as acharmos inferiores àquelas que os têm. Mas, pasmem, segundo pesquisa feita em 2010, pela UnB, 81% das mulheres que abortaram JÁ TÊM FILHOS! Aborto não é sinônimo de ódio a crianças, ou nenhuma demonização desse tipo. Enfim, se você é mulher e, mesmo sabendo de tudo que sabe agora, ainda é contra o direito de outras mulheres – e olha, é seu direito também, sabia, mesmo que, por motivos religiosos ou quaisquer que sejam, você jamais venha a exercê-lo –, reveja seus pensamentos, e procure entender se o que causa isso é mesmo um profundo senso de “direito à vida” ou, na verdade, misoginia internalizada tão fortemente, que você nem percebe que sua posição nesse caso não é fruto de “amor à vida” e sim de “ódio às mulheres” e, consequentemente, a você mesma.

Resumo da pesquisa realizada em 2010, pela UnB. 

Então, mulher, seja pessoalmente contra ou a favor do aborto, faça você um aborto ou não, mas seja a favor dos direitos das mulheres, acima de tudo. Seja a favor do fim do sequestro de nossos corpos, por um estado “laico”, controlado majoritariamente por homens e altamente influenciado pela religião. Enfim, seja a favor da vida das mulheres que morrem todos os dias em clínicas clandestinas, única e exclusivamente por ousarem querer mandar em seus próprios corpos. SEJA A FAVOR DA VIDA, SEJA A FAVOR DA DESCRIMINALIZAÇÃO!