Se tem uma coisa que
mostra, sem sombra de dúvidas, como nossa sociedade é misógina é
a linguagem, principalmente a linguagem depreciativa. Quando os
xingamentos não são descaradamente voltados pra diminuição da
mulher, são sutilmente voltados pra glorificação do homem.
Comecemos pelo
xingamento misógino mais básico: a própria palavra mulher.
Mulherzinha! Ser mulherzinha é ser fresca, sensível em excesso,
cheia de não me toques, chorona. Paralelamente, fazer as coisas como
homem é fazer bem feito, com vontade, com força. A gente cresce
ouvindo isso, e acaba naturalizando os binarismos mulher-fraqueza e
homem-força. Mas, não há nada de natural neles. Aliás, uma breve
observação das vidas de homens e mulheres já mostra que não é
bem assim, que mulheres são, por exemplo, mais fortes pra suportar
doenças, o que também não é natural, mas criado culturalmente.
Mulheres são tidas como frescas e fracas ao menor sinal de
reclamação, então nos acostumamos a suportar dores muito mais
fortes que homens, antes de procurarmos ajuda. Entretanto, crescemos
ouvindo e repetindo coisas como “ela é mais homem que muito
homem”, sem perceber que isso, na verdade, é uma ofensa a todas as
mulheres.
Então, vamos parar de
mandar mulheres e homens fazerem coisas como homem? Até porque o
mundo, criado até agora basicamente por homens, anda uma boa bosta
atualmente. Se você precisa mandar alguém fazer algo como outro,
mande fazer como Papai Noel, por exemplo, que consegue carregar nas
costas e entregar bilhões de presentes em uma noite! Ou como Mamãe
Noel, porque garanto que quem segura as pontas é ela, enquanto ele
leva toda a glória.
Quando queremos xingar
um homem, frequentemente sobra pra mulher. Ele é filho da puta, ou é
corno. O primeiro, e sua variante “puta que pariu”, são muito
problemáticos por motivos que me parecem óbvios, mas não devem
ser, porque continuam na boca do povo, inclusive de feministas. Ao
chamar um homem de filho da puta, estamos dizendo que 1. ser filho de
uma puta é algo ruim; 2. A culpa das merdas que aquele homem faz é
da mãe dele, não dele. Em primeiro lugar, ser filho de uma
prostituta não deveria ser considerado xingamento. Mulheres são
quase sempre levadas à prostituição por total falta de opção,
por mais que ainda estejam querendo enfiar na nossa cabeça a falácia
de que ser puta é ser livre, e outra bobagens. Muitas mulheres
entram na prostituição justamente pra sustentar os filhos, depois
de terem sido largadas pelos doadores de esperma das crianças. É
sempre bom lembrar: toda criança nasce de dois seres humanos, um
macho e uma fêmea. Mulher nenhuma faz filho sozinha, incluindo as
prostitutas. Aliás, ainda existem lugares onde moças, ao serem
estupradas e engravidarem, ainda por cima, são colocadas pra fora de
casa pelo pai, e a prostituição é a única alternativa pra elas.
Além disso, o termo culpabiliza mães pelos
problemas/defeitos/crimes de seus filhos. Se um homem não presta,
não é culpa da mãe dele. Se um homem é ladrão, não é culpa da
mãe dele. Se um homem estupra, não é culpa da mãe dele. Esses
termos só incutem ainda mais culpa nas mães, seres que já carregam
uma enorme carga de culpa em nossa sociedade. E a verdade é que mães
têm muito pouco poder sobre seus filhos, principalmente sobre
homens, pra serem responsáveis pelas bostas que eles fazem. O mesmo
raciocínio vale pra quando se xinga um homem de corno. Está
implícito que as merdas que ele fez foram feitas porque a mulher o
traiu. Aquele corno que não me paga os 500,00 que me deve! Cara, não
é porque a mulher dele o traiu que ele não te paga! É porque ele é
desonesto, não corno. Aquele corno que falta ao trabalho sem avisar!
Não, não é porque a mulher o traiu que ele falta, falta porque é
irresponsável.
Então, vamos tirar o
filho da puta e o puta que pariu da boca? E o corno também? Se você
faz questão de culpar alguém que não seja o próprio sujeito,
então chame de “filho do pai”, já que homens costumam ser os
irresponsáveis na criação dos filhos, muito mais que mulheres.
Chame de “filho de um deputado”, se você é daqueles que
acredita que todo político é igual. Chame de “filho de um
motorista bêbado” ou “filho de um vizinho que ouve música
alta”. São inúmeras possibilidades! Ou então, chame o sujeito do
que ele é, seja irresponsável, desonesto ou o que for.
Mas, não adianta
trocar o puta que pariu pelo “vai se fuder” ou “vai tomar no
cu”. Já perceberam que não se usa “vai fazer sexo” como
xingamento? Não teria nem sentido, se você quer xingar a pessoa,
mandar ela fazer alguma coisa considerada boa pela maioria, né?
Então, por que “vai se fuder” ou “tomar no cu” são
ofensivos? Porque quem “se fode” é mulher e não homem hetero.
Porque quem “toma no cu” é gay ou mulher, e não homem hetero (e
a sociedade só é homofóbica com homens gays, devido a
associarem-nos a mulheres, logo também é um xingamento misógino).
Daí, já dá pra tirar o que a sociedade pensa de nós, mulheres:
seres inferiores que se submetem ao que nenhum homem “de verdade”
se submete, ou seja, ser fodida, ser penetrada, invadida, violada,
tomada, comida. Senão, “vai se foder”, ou “vai tomar no cu”,
não teriam sentido nenhum como xingamento.
Então, vamos tirar o
“foda-se” e o “tomar no cu” da ponta da língua também? Se
você sente necessidade de mandar a pessoa pra algum lugar, mande à
merda. Merda é democrático, merda todo mundo faz, e, salvo raras
exceções, todos acham merda uma coisa fedorenta e ruim.
Porra, caralho, assim
não vai sobrar palavrão! Lamento informar que porra e caralho
também são misóginos. Não obviamente misóginos, mas, ao
glorificar o falo, e o que sai dele, contribuem pra aumentar o
falocentrismo da língua, e da sociedade. Assim também funcionam o
“do caralho”, “da porra” etc. Algo que é muito bom é “do
caralho” ou “pica”, porque, se é bom, só pode ser associado
com a super pica milagrosa e salvadora (mais aqui:
http://tepergunteialgumacoisafeminista.blogspot.com.br/2015/06/a-super-pica-milagrosa-e-salvadora-ou.html)!
Então, vamos tirar o
caralho e a porra da boca, e falar “buceta”, por exemplo, ou
“isso é da buceta”?
Já perceberam que, na
língua portuguesa, analogias feitas com animais cujo nome é uma
palavra feminina são sempre negativas? Cobra, baleia, anta, mula,
por exemplo. São animais cujo nome é expresso por uma palavra
feminina, embora os animais sejam tanto macho quanto fêmea,
obviamente. (Não queiram que eu saiba classificar isso em
substantivo epiceno, ou comum de dois gêneros, que eu nunca sei qual
é qual, e me recuso a aprender/ensinar essas classificações.
Enfim...) Pessoas não confiáveis, que traem os outros são: cobras
(ou, acabo de lembrar, traíras, substantivo também feminino).
Pessoas gordas são: baleias (baleia tem uma forma masculina também,
mas eu sou incapaz de memorizar a tal palavra, e só sei que ela
existe, porque apareceu num exercício de livro didático). Pessoas
não inteligentes são: antas, mulas. Ainda tem os mais sutis, como
girafa, pra se referir negativamente a pessoas altas, ou tartaruga,
pra se referir negativamente a pessoas lentas. Só a coruja se safou
aí da misoginia, já que ser mãe ou pai coruja é ser orgulhoso,
num sentido positivo, e a coruja é associada à inteligência.
Ah, mas existem também
burro, cachorro e outros como xingamento. Sim, mas, nesses casos,
usa-se o masculino pra homens e o feminino pra mulheres. Não tô
falando disso, tô falando que palavras que só existem no feminino,
quando usadas metaforicamente, terão sempre significado negativo,
enquanto as que têm masculino e feminino, poderão ser usadas tanto
pra coisas ruins (cachorro/cachorra), quanto pra coisas boas
(gata/gato). E pra coisas ruins no feminino (vaca) e boas no
masculino (forte como um touro, comer como um boi). Sem nos
esquecermos que até a pobre da galinha é usada pra falar de homens
que ciscam muito por aí! Até pra falar mal de homem se usa um
animal fêmea como metáfora!
Então, vamos deixar a
bicharada fora da língua?
Nesse grupo, também
entra a piranha, que também é substantivo feminino, e também só é
usado ofensivamente e contra mulheres. Saindo do mundo animal,
piranha tem vários sinônimos: puta, vadia, vagabunda, e o “mais
light”, periguete. Aqui temos duas situações, uma mais misógina
que a outra. Se usamos esses adjetivos pra falar da vida sexual de
uma mulher, estamos ofendendo-a simplesmente por fazer o que homens
sempre fazem, e pra eles não é ofensa. Então, parem. E, se usamos
esses adjetivos pra falar de algo que não seja a vida sexual de uma
mulher, então é mais absurdo ainda (não que falar da vida sexual
alheia não seja absurdo). Dilma sabe muito bem. Parece difícil que
se consiga fazer críticas a seu governo sem apelar pra chamá-la de
vagabunda, o que é bem estranho, porque motivos pra criticar o
governo dela não faltam. Mas, todos os motivos desaparecem, e a
ofensa passa a ser apenas à vida sexual dela. E isso não afeta só
a presidenta, mas todas nós: já ouvi aluno reclamando que a
“piranha da Fulana” o deixou reprovado. Considerando-se que
Fulana dá aula de português, e ele não sabe o significado da
palavra piranha, acho que a reprovação foi justa.
Até nas brincadeiras
de criança, a misoginia tá presente. Quem chegar por último é
mulher do padre! Eu falava isso nos anos 1980, sem ter a menor ideia
de todas as implicações. Eu sabia que padre não podia casar, então
mulher do padre não era coisa boa. Mas, eu não problematizava por
que quem chegar por último é a mulher do padre e não o próprio
padre! Já me explicaram que é porque mulher de padre vira
mula-sem-cabeça, logo é a última a chegar, porque não enxerga
nada (o que é ainda ofensivo pros deficientes visuais!). Mas, isso
continua não explicando por que é a mulher do padre que vira
mula-sem-cabeça e não o próprio padre! Quem tá indo contra a
própria religião é ele! Quem tá indo contra as regras da sua
profissão é ele! Ah, mas a culpa é sempre da mulher. Se um homem
trai a esposa, a culpa é da mulher que o seduziu, “destruidora de
lares”. Se um padre trai o celibato, a culpa também é da mulher
que o seduziu, óbvio. Se não fosse a tentação, ele não teria
caído em pecado, coitado. Desde Eva, aliás, passando por Hester
Prynne, as tentações são muitas pros pobres homens que não
conseguem se controlar.
Então, ensinem pra
suas crianças a não fazerem esse tipo de brincadeira. Se elas
realmente querem humilhar quem chega por último, o que já é
problemático, que o façam sem ofensas misóginas. Quem chegar por
último é o Rubinho Barrichello, pronto!
A nova moda agora é
chamar mulheres e homens falsos de Falsiane, e seus derivados, como
Escrotiane. Raramente, vejo alguém usando uma versão masculina do
nome, mesmo quando é pra falar de um homem. Cadê o Falsinei? Cadê
o Escrotinelson? Por que feminilizar os adjetivos falso e escroto,
até quando usados pra falar sobre homens? E mais, por que
substantivar um adjetivo, transformá-lo em um nome próprio
feminino, deixando implícito que mulheres não apenas têm atitudes
falsas, mas são substancialmente falsas, falsas o tempo todo, como
característica primordial, essencial, e não apenas algo que pode
ter sido momentâneo? Todo mundo é falso uma vez ou outra na vida,
algumas pessoas, mulheres ou não, são muito mais falsas que outras.
Isso é incontestável. A misoginia não está em chamar uma mulher
falsa de falsa, ou criticar situações em que mulheres são, sim,
falsas, mas sim em 1. dar um nome próprio feminino pra pessoas
falsas, substantivando o que é adjetivo, ou seja, essencializando o
que pode ter sido uma ocorrência temporária, o que dá a entender
que a falsidade já nasce com as mulheres, é uma característica
natural nossa, e não, muitas vezes, desenvolvida pela socialização
que temos pra rivalidade feminina; e 2. chamar até mesmo homens
falsos por esse nome próprio feminino, deixando implícito que,
quando homens são falsos, estão “agindo como mulheres”.
Então, por favor,
chamem falsos de falsos, e falsas de falsas, sem precisar
substantivar e naturalizar características que não pertencem a
nenhum dos dois sexos, e sim a pessoas individuais. Se querem
substantivar, pelo menos, usem no masculino quando forem falar de
homens! Falsinei e Escrotinelson estão aí pra isso mesmo.
Enfim, lembrem-se,
principalmente mulheres, que palavras o vento não leva, palavras têm
um poder imenso, não só de descrever a realidade, mas de
construí-la também. Uma das ferramentas mais fortes e mais antigas
do patriarcado é a linguagem misógina, e problematizar (e,
principalmente, deixar de usar) é nossa obrigação como feministas.
Não é só uma palavra, assim como não é só uma piada, assim como
não é só uma cantada, assim como não é só um tapinha, assim
como não é só uma agressão física, assim como não é só um
estupro, assim como não é só um feminicídio. Essas estratégias
de dominação obviamente têm pesos diferentes, mas TODAS contribuem
pra misoginia e exploração de mulheres por homens. Encerro com as
poderosas palavras de Cecília Meireles, no Romanceiro da
Inconfidência:
“A
liberdade das almas,
ai! com
letras se elabora...
E dos
venenos humanos
sois a
mais fina retorta:
frágil,
frágil como o vidro
e mais que
o aço poderosa!
Reis,
impérios, povos, tempos,
pelo vosso
impulso rodam...”
MEIRELES, Cecília.
Romanceiro da Inconfidência.
Disponível em:
http://professor.pucgoias.edu.br/SiteDocente/admin/arquivosUpload/5628/material/Cec%C3%83%C2%ADlia%20Meireles%20-%20Romanceiro%20da%20Inconfid%C3%83%C2%AAncia%20[Rev][1].pdf.
Acessado em: 03 de setembro de 2015. p. 149.
PS:
listinha básica de xingamentos não-misóginos (nem racistas,
gordofóbicos, capacitistas...):
canalha,
escroto, desprezível, energúmeno, estrupício, imprestável,
néscio, nojento, otário, patife, pífio, pusilânime, salafrário.