sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

VAMOS À MERDA! ou COMO XINGAR UM HOMEM SEM OFENDER UMA MULHER

Se tem uma coisa que mostra, sem sombra de dúvidas, como nossa sociedade é misógina é a linguagem, principalmente a linguagem depreciativa. Quando os xingamentos não são descaradamente voltados pra diminuição da mulher, são sutilmente voltados pra glorificação do homem.

Comecemos pelo xingamento misógino mais básico: a própria palavra mulher. Mulherzinha! Ser mulherzinha é ser fresca, sensível em excesso, cheia de não me toques, chorona. Paralelamente, fazer as coisas como homem é fazer bem feito, com vontade, com força. A gente cresce ouvindo isso, e acaba naturalizando os binarismos mulher-fraqueza e homem-força. Mas, não há nada de natural neles. Aliás, uma breve observação das vidas de homens e mulheres já mostra que não é bem assim, que mulheres são, por exemplo, mais fortes pra suportar doenças, o que também não é natural, mas criado culturalmente. Mulheres são tidas como frescas e fracas ao menor sinal de reclamação, então nos acostumamos a suportar dores muito mais fortes que homens, antes de procurarmos ajuda. Entretanto, crescemos ouvindo e repetindo coisas como “ela é mais homem que muito homem”, sem perceber que isso, na verdade, é uma ofensa a todas as mulheres.

Então, vamos parar de mandar mulheres e homens fazerem coisas como homem? Até porque o mundo, criado até agora basicamente por homens, anda uma boa bosta atualmente. Se você precisa mandar alguém fazer algo como outro, mande fazer como Papai Noel, por exemplo, que consegue carregar nas costas e entregar bilhões de presentes em uma noite! Ou como Mamãe Noel, porque garanto que quem segura as pontas é ela, enquanto ele leva toda a glória.

Quando queremos xingar um homem, frequentemente sobra pra mulher. Ele é filho da puta, ou é corno. O primeiro, e sua variante “puta que pariu”, são muito problemáticos por motivos que me parecem óbvios, mas não devem ser, porque continuam na boca do povo, inclusive de feministas. Ao chamar um homem de filho da puta, estamos dizendo que 1. ser filho de uma puta é algo ruim; 2. A culpa das merdas que aquele homem faz é da mãe dele, não dele. Em primeiro lugar, ser filho de uma prostituta não deveria ser considerado xingamento. Mulheres são quase sempre levadas à prostituição por total falta de opção, por mais que ainda estejam querendo enfiar na nossa cabeça a falácia de que ser puta é ser livre, e outra bobagens. Muitas mulheres entram na prostituição justamente pra sustentar os filhos, depois de terem sido largadas pelos doadores de esperma das crianças. É sempre bom lembrar: toda criança nasce de dois seres humanos, um macho e uma fêmea. Mulher nenhuma faz filho sozinha, incluindo as prostitutas. Aliás, ainda existem lugares onde moças, ao serem estupradas e engravidarem, ainda por cima, são colocadas pra fora de casa pelo pai, e a prostituição é a única alternativa pra elas. Além disso, o termo culpabiliza mães pelos problemas/defeitos/crimes de seus filhos. Se um homem não presta, não é culpa da mãe dele. Se um homem é ladrão, não é culpa da mãe dele. Se um homem estupra, não é culpa da mãe dele. Esses termos só incutem ainda mais culpa nas mães, seres que já carregam uma enorme carga de culpa em nossa sociedade. E a verdade é que mães têm muito pouco poder sobre seus filhos, principalmente sobre homens, pra serem responsáveis pelas bostas que eles fazem. O mesmo raciocínio vale pra quando se xinga um homem de corno. Está implícito que as merdas que ele fez foram feitas porque a mulher o traiu. Aquele corno que não me paga os 500,00 que me deve! Cara, não é porque a mulher dele o traiu que ele não te paga! É porque ele é desonesto, não corno. Aquele corno que falta ao trabalho sem avisar! Não, não é porque a mulher o traiu que ele falta, falta porque é irresponsável.

Então, vamos tirar o filho da puta e o puta que pariu da boca? E o corno também? Se você faz questão de culpar alguém que não seja o próprio sujeito, então chame de “filho do pai”, já que homens costumam ser os irresponsáveis na criação dos filhos, muito mais que mulheres. Chame de “filho de um deputado”, se você é daqueles que acredita que todo político é igual. Chame de “filho de um motorista bêbado” ou “filho de um vizinho que ouve música alta”. São inúmeras possibilidades! Ou então, chame o sujeito do que ele é, seja irresponsável, desonesto ou o que for.

Mas, não adianta trocar o puta que pariu pelo “vai se fuder” ou “vai tomar no cu”. Já perceberam que não se usa “vai fazer sexo” como xingamento? Não teria nem sentido, se você quer xingar a pessoa, mandar ela fazer alguma coisa considerada boa pela maioria, né? Então, por que “vai se fuder” ou “tomar no cu” são ofensivos? Porque quem “se fode” é mulher e não homem hetero. Porque quem “toma no cu” é gay ou mulher, e não homem hetero (e a sociedade só é homofóbica com homens gays, devido a associarem-nos a mulheres, logo também é um xingamento misógino). Daí, já dá pra tirar o que a sociedade pensa de nós, mulheres: seres inferiores que se submetem ao que nenhum homem “de verdade” se submete, ou seja, ser fodida, ser penetrada, invadida, violada, tomada, comida. Senão, “vai se foder”, ou “vai tomar no cu”, não teriam sentido nenhum como xingamento.

Então, vamos tirar o “foda-se” e o “tomar no cu” da ponta da língua também? Se você sente necessidade de mandar a pessoa pra algum lugar, mande à merda. Merda é democrático, merda todo mundo faz, e, salvo raras exceções, todos acham merda uma coisa fedorenta e ruim.

Porra, caralho, assim não vai sobrar palavrão! Lamento informar que porra e caralho também são misóginos. Não obviamente misóginos, mas, ao glorificar o falo, e o que sai dele, contribuem pra aumentar o falocentrismo da língua, e da sociedade. Assim também funcionam o “do caralho”, “da porra” etc. Algo que é muito bom é “do caralho” ou “pica”, porque, se é bom, só pode ser associado com a super pica milagrosa e salvadora (mais aqui: http://tepergunteialgumacoisafeminista.blogspot.com.br/2015/06/a-super-pica-milagrosa-e-salvadora-ou.html)!

Então, vamos tirar o caralho e a porra da boca, e falar “buceta”, por exemplo, ou “isso é da buceta”?

Já perceberam que, na língua portuguesa, analogias feitas com animais cujo nome é uma palavra feminina são sempre negativas? Cobra, baleia, anta, mula, por exemplo. São animais cujo nome é expresso por uma palavra feminina, embora os animais sejam tanto macho quanto fêmea, obviamente. (Não queiram que eu saiba classificar isso em substantivo epiceno, ou comum de dois gêneros, que eu nunca sei qual é qual, e me recuso a aprender/ensinar essas classificações. Enfim...) Pessoas não confiáveis, que traem os outros são: cobras (ou, acabo de lembrar, traíras, substantivo também feminino). Pessoas gordas são: baleias (baleia tem uma forma masculina também, mas eu sou incapaz de memorizar a tal palavra, e só sei que ela existe, porque apareceu num exercício de livro didático). Pessoas não inteligentes são: antas, mulas. Ainda tem os mais sutis, como girafa, pra se referir negativamente a pessoas altas, ou tartaruga, pra se referir negativamente a pessoas lentas. Só a coruja se safou aí da misoginia, já que ser mãe ou pai coruja é ser orgulhoso, num sentido positivo, e a coruja é associada à inteligência.

Ah, mas existem também burro, cachorro e outros como xingamento. Sim, mas, nesses casos, usa-se o masculino pra homens e o feminino pra mulheres. Não tô falando disso, tô falando que palavras que só existem no feminino, quando usadas metaforicamente, terão sempre significado negativo, enquanto as que têm masculino e feminino, poderão ser usadas tanto pra coisas ruins (cachorro/cachorra), quanto pra coisas boas (gata/gato). E pra coisas ruins no feminino (vaca) e boas no masculino (forte como um touro, comer como um boi). Sem nos esquecermos que até a pobre da galinha é usada pra falar de homens que ciscam muito por aí! Até pra falar mal de homem se usa um animal fêmea como metáfora!

Então, vamos deixar a bicharada fora da língua?

Nesse grupo, também entra a piranha, que também é substantivo feminino, e também só é usado ofensivamente e contra mulheres. Saindo do mundo animal, piranha tem vários sinônimos: puta, vadia, vagabunda, e o “mais light”, periguete. Aqui temos duas situações, uma mais misógina que a outra. Se usamos esses adjetivos pra falar da vida sexual de uma mulher, estamos ofendendo-a simplesmente por fazer o que homens sempre fazem, e pra eles não é ofensa. Então, parem. E, se usamos esses adjetivos pra falar de algo que não seja a vida sexual de uma mulher, então é mais absurdo ainda (não que falar da vida sexual alheia não seja absurdo). Dilma sabe muito bem. Parece difícil que se consiga fazer críticas a seu governo sem apelar pra chamá-la de vagabunda, o que é bem estranho, porque motivos pra criticar o governo dela não faltam. Mas, todos os motivos desaparecem, e a ofensa passa a ser apenas à vida sexual dela. E isso não afeta só a presidenta, mas todas nós: já ouvi aluno reclamando que a “piranha da Fulana” o deixou reprovado. Considerando-se que Fulana dá aula de português, e ele não sabe o significado da palavra piranha, acho que a reprovação foi justa.

Até nas brincadeiras de criança, a misoginia tá presente. Quem chegar por último é mulher do padre! Eu falava isso nos anos 1980, sem ter a menor ideia de todas as implicações. Eu sabia que padre não podia casar, então mulher do padre não era coisa boa. Mas, eu não problematizava por que quem chegar por último é a mulher do padre e não o próprio padre! Já me explicaram que é porque mulher de padre vira mula-sem-cabeça, logo é a última a chegar, porque não enxerga nada (o que é ainda ofensivo pros deficientes visuais!). Mas, isso continua não explicando por que é a mulher do padre que vira mula-sem-cabeça e não o próprio padre! Quem tá indo contra a própria religião é ele! Quem tá indo contra as regras da sua profissão é ele! Ah, mas a culpa é sempre da mulher. Se um homem trai a esposa, a culpa é da mulher que o seduziu, “destruidora de lares”. Se um padre trai o celibato, a culpa também é da mulher que o seduziu, óbvio. Se não fosse a tentação, ele não teria caído em pecado, coitado. Desde Eva, aliás, passando por Hester Prynne, as tentações são muitas pros pobres homens que não conseguem se controlar.

Então, ensinem pra suas crianças a não fazerem esse tipo de brincadeira. Se elas realmente querem humilhar quem chega por último, o que já é problemático, que o façam sem ofensas misóginas. Quem chegar por último é o Rubinho Barrichello, pronto!

A nova moda agora é chamar mulheres e homens falsos de Falsiane, e seus derivados, como Escrotiane. Raramente, vejo alguém usando uma versão masculina do nome, mesmo quando é pra falar de um homem. Cadê o Falsinei? Cadê o Escrotinelson? Por que feminilizar os adjetivos falso e escroto, até quando usados pra falar sobre homens? E mais, por que substantivar um adjetivo, transformá-lo em um nome próprio feminino, deixando implícito que mulheres não apenas têm atitudes falsas, mas são substancialmente falsas, falsas o tempo todo, como característica primordial, essencial, e não apenas algo que pode ter sido momentâneo? Todo mundo é falso uma vez ou outra na vida, algumas pessoas, mulheres ou não, são muito mais falsas que outras. Isso é incontestável. A misoginia não está em chamar uma mulher falsa de falsa, ou criticar situações em que mulheres são, sim, falsas, mas sim em 1. dar um nome próprio feminino pra pessoas falsas, substantivando o que é adjetivo, ou seja, essencializando o que pode ter sido uma ocorrência temporária, o que dá a entender que a falsidade já nasce com as mulheres, é uma característica natural nossa, e não, muitas vezes, desenvolvida pela socialização que temos pra rivalidade feminina; e 2. chamar até mesmo homens falsos por esse nome próprio feminino, deixando implícito que, quando homens são falsos, estão “agindo como mulheres”.

Então, por favor, chamem falsos de falsos, e falsas de falsas, sem precisar substantivar e naturalizar características que não pertencem a nenhum dos dois sexos, e sim a pessoas individuais. Se querem substantivar, pelo menos, usem no masculino quando forem falar de homens! Falsinei e Escrotinelson estão aí pra isso mesmo.

Enfim, lembrem-se, principalmente mulheres, que palavras o vento não leva, palavras têm um poder imenso, não só de descrever a realidade, mas de construí-la também. Uma das ferramentas mais fortes e mais antigas do patriarcado é a linguagem misógina, e problematizar (e, principalmente, deixar de usar) é nossa obrigação como feministas. Não é só uma palavra, assim como não é só uma piada, assim como não é só uma cantada, assim como não é só um tapinha, assim como não é só uma agressão física, assim como não é só um estupro, assim como não é só um feminicídio. Essas estratégias de dominação obviamente têm pesos diferentes, mas TODAS contribuem pra misoginia e exploração de mulheres por homens. Encerro com as poderosas palavras de Cecília Meireles, no Romanceiro da Inconfidência:

“A liberdade das almas,
ai! com letras se elabora...
E dos venenos humanos
sois a mais fina retorta:
frágil, frágil como o vidro
e mais que o aço poderosa!
Reis, impérios, povos, tempos,
pelo vosso impulso rodam...”


PS: listinha básica de xingamentos não-misóginos (nem racistas, gordofóbicos, capacitistas...):


canalha, escroto, desprezível, energúmeno, estrupício, imprestável, néscio, nojento, otário, patife, pífio, pusilânime, salafrário.