Semana passada, estive
envolvida em três tretas online que tiveram em comum algo que só
notei posteriormente: foram todas sobre o controle do corpo feminino.
Uma “amizade” desfeita, uma mantida (unicamente porque a pessoa
trabalha comigo) e mais uma mantida porque eu quis e pronto.
Treta número 1: Post
sobre altura feminina. Comentei que achava machista e a amiga se
irritou. Parei aí, por não querer perder essa amizade, porque é
alguém com quem vale a pena conversar. E certamente porque, das
três, foi a mais leve. Mas, mesmo “leve”, é pesada. O post
classificava as mulheres em smurfs, anãs, normais e avatares. Alguém
pode dizer, “tá reclamando porque é baixinha”. Não, pior que
não. Descobri nesse post que, do “alto” dos meus 1,64, estou no
limite da normalidade. Sou NORMAL! Do que estou reclamando então,
oras? Reclamo de um post que classifica mulheres em NORMAIS e as
outras.
Mas, ora, você pode
dizer, o mesmo post poderia ter sido feito sobre homens, não?
Poderia, mas não foi. E, se fosse, estaria errado também. No
entanto, não estou aqui para falar de homens, que também sofrem com
o controle do corpo, mas sofrem umas dez vezes menos. E, exatamente
por isso, não vemos esse tipo de post sobre altura masculina, só
feminina. Ninguém se dá ao trabalho de dizer que um homem com menos
de 1,64 seria um anão. Alguém já viu esse post por aí? Não. Mas,
sobre mulheres, tem aos montes. Sobre altura, sobre peso, sobre
cabelos, sobre sobrancelhas, sobre unhas das mãos, sobre unhas dos
pés (há diferenças!), sobre barriga, sobre nariz, sobre pés, até
sobre buceta. Sim, existem posts sobre quais tipos de bucetas são
mais ou menos bonitos. Sobre pênis, eu nunca vi.
E daí? E daí que
esses posts não são piadas inofensivas, não são apenas para a
gente rir, como faziam a amiga e outras amigas dela no tal post. A
gente ri, brinca e tal. Mas, tem muita mulher e, pior, muita menina
por aí que se desespera em ver que não é NORMAL segundo os
padrões. Eu, quando ainda tinha “apenas” 1,58, sofria por achar
que não chegaria a 1,60. E depois, sofria por ver que não passaria
de 1,65. E as altas também sofrem, até porque existe aquela
regrinha que o homem tem que ser mais alto que a mulher, então,
quanto mais alta a mulher, menos homens disponíveis para cortejá-la.
E, como, para ser alguém, a mulher precisa de um homem do lado
(claro!), elas terão muito menos chances de encontrar a felicidade
que nós, mulheres NORMAIS, temos. Eu, com 1,64, encontrei a
felicidade num homem de 1,74, combinação perfeita. Mas, imagina se
eu tivesse nascido avatar, como minha irmã, com 1,78! Jamais teria
casado com o homem da minha vida! No fim das contas, TODA mulher
sofre com esses padrões e, por isso, é tão deprimente ver mulheres
compartilhando isso “apenas para rir um pouquinho”.
Treta número 2: os
ovários da Angelina Jolie. Ontem fiquei sabendo
que Angelina Jolie estava novamente nas manchetes, não com um filme,
ou novo filho, ou projeto humanitário, mas uma nova cirurgia, dessa
vez para retirar os ovários. E claro que fiquei sabendo disso
através de um comentário preconceituoso, cheio de julgamento, de
gente que não sabe, porque não quer saber, do que está falando.
Para completar, o comentário foi seguido de piadas sobre retirar o
coração porque tem histórico de infarto na família, e que para
prevenir câncer, basta ter uma vida saudável.
Angelina Jolie tem
histórico de cânceres de mama e ovários na família, tendo perdido
a mãe, a tia e a avó assim. Atualmente, existem testes que provam
se uma pessoa tem um gene (e não gen) de uma doença, o que é o
caso dela para os genes desses dois cânceres. Não lembro de
detalhes, mas basta buscar rapidamente no Google, que se encontra uma
explicação clara dos nomes dos genes, de como eles atuam, e de como
hoje se recomenda a cirurgia preventiva.
Apesar disso tudo,
pessoas aleatórias ao redor do mundo, que nem conhecem Ms. Jolie, se
acham no direito de acusar, julgar e condenar a atriz por se
prevenir, já que estatisticamente as chances de ela desenvolver um
desses cânceres são enormes. A reação foi a mesma há alguns anos
quando ela removeu as mamas pelo mesmo motivo. Pergunto-me se, caso
seu marido, Brad Pitt, passasse por cirurgia semelhante, haveria
tanta condenação.
Não, não haveria.
Provavelmente ele seria até exaltado como herói. O que está em
jogo aqui é a mania, enfiada na cabeça de todos, e desconstruída
por poucos até hoje, de se sentirem donos dos corpos das mulheres.
De qualquer mulher, veja bem, não apenas aquelas conhecidas e
próximas. Principalmente aquelas partes do corpo relacionadas à
feminilidade e à reprodução. Aí vai a Dona Jolie e resolve mexer
com os dois ao mesmo tempo? Como ousa?! É a mesma mania que dá a
muitos o “direito” de se meterem no aborto alheio, e na gravidez
alheia também, e até na vida de quem não quer filhos! Ou seja,
nenhuma mulher escapa. Nem as que têm filhos. Nem as que abortam.
Nem as que nunca engravidam. Nem a Angelina Jolie.
Muito menos a Angelina
Jolie! Já não basta ela ter “roubado” o marido da Rachel,
aquela fofa? Já não basta ser linda e milionária e casada com o
Brad Pitt? Como ela ainda ousa retirar partes do corpo que não
servem para absolutamente nada? Como ousar mexer com sua feminilidade
de sex symbol? E com seu aparelho reprodutor? Ela “só” tem seis
filhos! E se o marido quiser mais? E como fica o Brad Pitt sem os
seios dela pra apalpar?
Em 1989, num sábado,
morria Gilda Radner, atriz e comediante americana, que fez parte do
elenco original do programa Saturday Night Life. Tinha 43 anos.
Morreu de câncer no ovário, assim como várias mulheres de sua
família. Na época, não havia teste genético, nem cirurgia
preventiva. Se houvesse, seu talento ainda poderia estar aqui
conosco, nos fazendo rir, e rir, pensando, o que não é fácil. Não
teria nem 70 anos ainda. Angelina Jolie está chegando à idade em
que Gilda morreu. E, para alguns, ela deveria deixar essa roleta
russa rodando, e arriscar-se a morrer precocemente, deixando 6 filhos
pequenos no mundo. Para serem criados pelo pai, que, claro, viraria o
herói de toda a situação.
Muitos acreditam que
Angelina Jolie deveria correr esse risco desnecessário, mantendo
partes de seu corpo que não têm qualquer utilidade, além de
satisfazer a necessidade alheia de controlar nossos corpos. O que
essas pessoas não admitem é ver uma mulher com total controle sobre
seu corpo, que não põe sua feminilidade ou reprodução acima de si
mesma. Uma mulher que prefere prevenir o que pode ser prevenido, em
vez de ficar doente e virar mártir depois. E o pior é ver muitas
mulheres repetindo esse discurso. Eu acredito que essas pessoas
poderiam mandar tirar seus cerébros, já que não os estão usando
mesmo.
Treta número 3: a
bunda da Yoko Ono. Outra “amiga”, agora ex-amiga, postou aquela
“piada” sobre nada ser pior que a bunda da Yoko. Eu nem ia
comentar, porque, se a gente for comentar todos esses posts, não
terá tempo para mais nada, então é saudável escolher as batalhas.
Mas, como a prima da dona do post já tinha comentado, eu disse
apenas que concordava com ela. Apareceram outras pessoas para
discutir e, pronto, a treta tava armada. Eu pefiro nem entrar em
treta, porque depois que entro... Mas, comprei a briga. Enfim, acabei
excluindo a “amiga” e seguindo com a vida.
E por que a bunda da
Yoko me levou a isso? A Yoko foi culpada pelo fim dos Beatles, nem
merecia ser defendida. Claro, porque, afinal, quando quatro homens
não conseguem ou não querem se manter juntos em uma banda, a culpa
é de uma mulher, né, gente? Os Beatles estariam juntos até hoje,
Lennon não teria sido assassinado (por um hmem), George não teria
tido câncer e estariam tocando e gravando e fazendo shows, não
fosse a Yoko aparecer na vida do John, aquela piranha japonesa! E é
só uma bunda, afinal. Não, é só uma bunda DE MULHER. E ver outra
mulher rindo de uma mulher por não se encaixar no padrão de beleza
é, novamente, deprimente. Por quê? Porque TODAS NÓS, inclusive a
tola que estava rindo, sofremos para alcançar esse padrão
di-a-ria-men-te. E, o mais cruel: ninguém nos avisa que ele é
inalcansável. Não podemos descansar um minuto, faltar um dia à
academia, comer um chocolate, que a culpa ataca imediatamente. E,
mesmo se resistimos à tentação, a culpa de ter pensado nisso
também ataca. Podem acreditar. Sei do que estou falando. Cresci
sendo “cheinha” e frustrada, mas desde os 18, foram tantas
dietas, que já emagreci meu peso umas duas vezes. E ganhei todo de
novo, claro. Perco peso fácil, fácil, mas se comer NORMALMENTE, ele
volta. E olha que como muito pouco. É meu metabolismo e, só agora,
com 37 anos, percebi que não adianta lutar contra. E, mais que isso,
que não tenho por que lutar contra. Nunca me incomodei realmente com
meu peso. O que sempre me incomodou foi meu pai falando que eu
precisava emagrecer, as revistas falando que eu precisava emagrecer,
o mundo me chamando de “gordinha”. Até essa primeira dieta, eu
não usava blusa que não tivesse manga pelo menos até o cotovelo.
No Rio de Janeiro! No Hell de Janeiro! E antes que a patrulha
gordofóbica apareça, sempre fui saudável, ou melhor, o peso, que
nunca foi muito acima do considerado NORMAL, nunca levou a nenhum
problema de saúde. Exceto aos problemas psicológicos que eu tinha
por não me sentir NORMAL.
Mas, homens também
passam por isso! Tá, sempre temos que incluir os homens, né? Porque
falar exclusivamente sobre mulheres é se vitimizar! Sim, homens
passam por isso, mas não com a mesma intensidade. Eu cresci lendo
Capricho. Alguém aí conhece alguma “revista masculina”
como as revistas femininas que dominam as bancas? Não estou falando
da Playboy. Alguém já viu revista masculina sobre como o corpo do
homem deve ser para agradar as mulheres? Sobre as últimas dietas que
vão te fazer perder 6 Kg em 2h30? Sobre a última moda que você não
terá dinheiro para comprar, e ainda bem, porque não é adequada ao
seu “tipo de corpo” mesmo (lembrando que, se você é gorda,
nenhuma moda lhe servirá, só a plus size, se você não for
enorme...)? E a publicidade? Uma coisa que sempre me intrigou... Por
que modelos femininas são esquálidas e altíssimas – as plus size
são mais magras que eu e as mignons chegam a ter 1,70 –, mas
modelos masculinos se aproximam mais de um corpo de homem mediano?
Nem tão magros, nem gordos, não muito musculosos, de altura mediana
para um homem, com cabelo comum à maioria dos homens, com pele comum
à maioria dos homens e sem nenhum padrão para os pelos do corpo,
alguns mais, outros menos peludos, com ou sem barba. Não vou nem
falar da indústria da beleza, e do fato que 90% dos produtos de
beleza são para mulheres, porque só isso daria outro texto...
Em comum, essas três
amigas com quem me confrontei têm o fato de serem professoras, terem
graduação e pós-graduação, logo não se tratam de mulheres que
compartilham essas coisas influenciadas por preconceitos religiosos,
ou por não terem as ferramentas intelectuais para analisar melhor a
informação e, principalmente o que está por trás dela. Muito pelo
contrário, ao ser questionada, a ex-amiga respondeu do alto de sua
arrogância de doutora em literatura e professora da UERJ, que eu e a
prima dela estávamos exagerando e que não temos senso de humor. Na
verdade, parece que, para algumas mulheres, quanto mais elas
conquistam o sucesso profissional, e mais se “aproximam” dos
homens, menos interessam a elas as questões femininas e feministas,
como se elas pudessem evitar sofrer misoginia só porque,
profissionalmente, alcançaram o “sucesso masculino”. Newsflash
para vocês que pensam e agem assim: você é mulher também, amiga!
A misoginia vai te alcançar, cedo ou tarde, mesmo com você rindo de
quem luta contra ela. Quando você fala sobre a bunda da Yoko ou os
ovários da Angelina, você está falando de TODAS NÓS. (Não, eu
não errei por distração no título deste texto.) Está ajudando a
perpetuar um padrão inalcançável de beleza, a perpetuar a paranoia
na cabeça de todas que lerem aquilo e não virem apenas como uma
piada (e mesmo na das que veem como piada). Eu sei bem, porque já
fui assim, mas isso é assunto para outro texto...