Eu sempre fui
feminista. Muito antes de virar “moda”. Mas, eu nunca fui
feminista. Não antes de redescobrir o feminismo, graças a essa
“moda”.
Eu sempre achei que
mulher deve trabalhar e ganhar o mesmo que homens, óbvio. São
poucas as pessoas que conseguem ir contra essa ideia hoje em dia sem
serem consideradas, no mínimo, ridículas. E que o trabalho
doméstico deve ser dividido igualmente. E, aí já começa a
complicar, né? Eu ficava indignada ao ver as colegas de trabalho
que, antes de viajarem para passar a noite em outra cidade e
trabalhar no dia seguinte, deixavam o almoço pronto pra todos os
dias em que estariam fora! Também achava um absurdo que elas
lavassem toda a roupa da casa, e fizessem toda a faxina etc. Com
certeza, porque minha criação de classe média alta não foi pra
nada disso, já que minha mãe sempre trabalhou fora e nunca fez
questão de que a gente aprendesse a fazer nada em casa, pois sabia
que nós trabalharíamos fora também. Também não me casei com um
boçal que exigisse nada disso. Muito pelo contrário, quando alguém
faz algo em casa, é ele. Então, eu concluía que a culpa daquilo
tudo era das próprias mulheres que se casaram com esses trastes e
que, portanto, gostam da situação péssima de dupla ou tripla
jornada em que se encontram.
Eu nunca culpei uma
mulher pelo próprio abuso, mas pensava “por que não se cuidou?
Por que estava andando sozinha na rua a essas horas? Por que usou
saia tão curta? Por que bebeu? Por que foi pra casa de estranhos?”
O que dá no mesmo que culpar a mulher pelo próprio abuso. Eu me
cuidava, eu nunca andava sozinha a certas horas, eu não usava saia
curta, eu não bebia, eu não ia a casa de estranhos. Logo, eu estava
safa e essas bobas só tiveram o que procuravam, ou foram ingênuas
de não se cuidarem.
Eu acreditava que eu,
inteligente e superior a outras mulheres, tinha tomado decisões
individuais na vida que tinham permitido que eu escapasse de todas
essas ciladas. Eu acreditava que tudo se devia a indivíduos
resolvendo individualmente suas questões. Eu acreditava que o
feminismo já tinha feito o que tinha que fazer e restava a nós
agora apenas manter essas conquistas, escolhendo bem, e
individualmente, condições que nos permitissem não cair em ciladas
como as narradas acima.
Eu era feminista
liberal e não sabia.
Eu não via que o que
está por trás dessas questões é algo muito mais profundo,
sistêmico, e que não pode ser combatido no nível individual, ainda
que pequenas “revoluções” pessoais sejam possíveis e
benvindas. Eu não via que as “escolhas” feitas por mim não são,
nem nunca foram, “livres”, assim como as feitas pelas outras
mulheres também não o são. Eu não via que, embora tenha escapado
dessas ciladas, caí em muitas, muitas outras, porque, num sistema
que te cria pra ser cidadã de segunda classe, é isso que vai
acontecer, independentemente das “escolhas” individuais. Num
sistema de classes, em que você faz parte da classe dominada, e no
qual não há possibilidade de mobilidade social, há pouco que você
possa fazer pra fugir da subordinação, principalmente se você não
enxerga essa característica do sistema, ou melhor, não entende a
própria fundamentação desse sistema bipartido. Num sistema que te
ensina desde o berço, ou desde a ultrassonografia, a ser obediente,
pacata, doce, cuidadora, há muito pouco a fazer pra fugir desses
papéis, pois mesmo quem acha que foge, muitas vezes está tão ou
mais enterrada neles do que as que nem tentam fugir. Quantas vezes já
me deparei com mulheres que acreditam que, por não terem filhos,
fugiram do papel de cuidadora, sendo que elas cuidam de tudo e todos
a sua volta, menos de si mesmas? Não adianta não ser mãe dos
próprios filhos, mas ser mãe de todos!
O feminismo liberal só
trouxe conquistas mesmo pra uma classe: os homens. Obviamente, antes
que me acusem de mal-agradecida, sei que devo muito às mulheres que
lutaram antes de mim, pelo direito ao voto, ao trabalho, ao estudo,
senão eu nem saberia escrever pra dizer isso aqui, e também pelo
direito a usar calça comprida, cabelo curto, e ter “liberdade”
sexual. Mas, tá na hora de ir além, porque esse feminismo
superficial só beneficiou os próprios homens. Pra que serve o
direito ao voto se, mesmo mulheres sendo 50% do eleitorado, a enorme
maioria dos eleitos ainda é de homens? E, principalmente, homens que
não pensam em fazer leis pra corrigir as diferenças entre os
gêneros na nossa sociedade? De que adianta ter direito a trabalhar,
e estudar, se junto vem a dupla (ou tripla) jornada, enquanto os
homens continuam com apenas uma jornada, e nem mais a “obrigação”
de sustentar a casa têm? De que adianta o direito de trabalhar e
estudar, se junto vem a cobrança de ser uma supermulher, e todas as
frustrações que acompanham o inevitável fracasso, inclusive o
aumento nos problemas de saúde das mulheres? De que adianta a
“liberdade” sexual, se ainda somos catalogadas em “pra casar”
e “pra diversão”, como objetos que nunca deixamos de ser? De que
adianta poder usar a roupa que quisermos, se seremos culpadas pelo
próprio estupro, se não estivermos vestidas como “moças de bem”?
Pra que serve esse feminismo que muda a superfície, mas não a raiz
do problema?
E qual essa raiz? O
sistema de gêneros. Hoje entendo que o fim do machismo só
acontecerá quando não existirem mais gêneros, quando não existir
mais mulher e homem, quando todos formos apenas gente. Quando a
primeira pergunta que se fizer a uma mulher grávida não será mais
“é menina ou menino” e, consequentemente, não começarão nesse
exato momento as imposições sobre os seres que tiveram o “azar”
de nascer na classe subordinada dessa sociedade. Não, não sou
ingênua de achar que estarei viva pra ver esse dia. Nem mesmo de
achar, dada a atual conjuntura, que esse dia algum dia chegará. Mas,
não é por isso que deixarei de viver tendo como meta esse ideal,
mesmo que, na prática, tenha que me contentar com as migalhas de
igualdade que o patriarcado libera aqui e ali pra nos calar, pra não
querermos que o feminismo avance em direção ao único fim possível
pra misoginia: o fim do sistema de gêneros.
Eu não via. Eu passei
a ver. E me tornei feminista radical. E agora não tem mais volta.