terça-feira, 28 de julho de 2015

JOGO DOS 7000 MIL ERROS - 21-23


ERRO NÚMERO 21: CÂNCER NÃO É PIADA

Essa não é questão de feminismo, é só de bom senso mesmo. Acho que nem preciso entrar em muitos detalhes, né?

Se bem que ainda tem gente, como Renato Aragão, que se lamenta que hoje não pode mais fazer piada com certos assuntos. Sr. Didi, a verdade é que nunca pôde, mas homens brancos heteros e de classe alta, como o senhor, continuavam fazendo essas piadas, já que os grupos atingidos não tinham qualquer voz. Hoje, ainda não temos muita voz, tanto é que piadas assim ainda existem, mas a cada dia vamos em uma direção sem volta nesse sentido. Felizmente.

Pros comediantes, resta fazer piada boa, né? Aí vai ficar difícil pra alguns, e só restarão os realmente competentes, pro bem do bom senso e da comédia brasileira.

ERRO NÚMERO 22: NÃO EXISTE MULHER MASCULINA

Comparar uma mulher despida de feminilidade com um homem é um erro muito comum. Volta e meia, a gente vê alguém descrever uma mulher como “masculina”, e mesmo dentro do feminismo, isso acontece. Mulheres não são masculinas, são despidas de feminilidade, e há uma enorme diferença entre dizer as coisas dessas duas maneiras distintas.

Dizer que uma mulher é “masculina” é dizer que ela aspira a ser algo que ela não é: um homem. A mulher que se recusa a cumprir com os rituais de feminilidade, seja por que motivo for, não o faz porque quer se parecer com um homem, mas porque não quer se parecer com o que a sociedade acredita ser uma mulher. Hoje em dia, isso seria ter cabelo comprido e bem cuidado, pele lisa e bem cuidada (SEMPRE depilada), unhas feitas e bem cuidadas, rosto maquiado (dependendo da ocasião), enfim, já falei disso tudo aqui: http://tepergunteialgumacoisafeminista.blogspot.com.br/2015/05/mulher-da-cabeca-aos-pes.html. Mas, nada disso define o que é ser mulher. Primeiro, porque esses padrões são históricos e culturais, e o que é considerado feminino hoje pode um dia não ter tido essa conotação. De qualquer forma, uma coisa é comum a todos os rituais e marcadores de feminilidade, em qualquer cultura patriarcal, em qualquer época: são sempre marcas e rituais de fraqueza, delicadeza, submissão. E no estágio atual do capitalismo, são também rituais que custam dinheiro. Mulheres investem um tempo enorme na tarefa de se parecerem “mulheres”! Mulheres investem boa parte de seus salários 30% menores que os de homens em se parecerem “mulheres”! Mas, vou contar um segredo pra vocês: não precisa de nada disso pra ser mulher! Mulher é aquele ser que, desde a ultrassonografia, começa a ser socializada pra submissão, pra obediência, pra autocrítica exagerada, pra dependência emotiva de homens, pra acreditar em amor romântico e príncipe encantado, pro trabalho doméstico e, também, pra parecer “feminina”. No entanto, se recusar a se parecer feminina é apenas uma parte disso, e não faz com que uma mulher deixe de ser mulher. E sabe por quê? Porque ela não deixa de sofrer misoginia, ela não deixa de sofrer com o machismo. Muitas mulheres até acreditam que ter aparência não feminina garantirá a elas o respeito que homens têm, mas se surpreendem quando isso não acontece. Muito pelo contrário, na maioria dos casos, a mulher que não se submete aos rituais de feminilidade sofre até mais misoginia, a qual pode se manifestar de várias formas, desde caras estranhas na rua, passando pela perda de oportunidades de emprego, até o estupro corretivo de lésbicas. Enfim, mulheres que se recusam a se submeter a esses rituais não são menos mulheres que as que se submetem. Assim como mulheres que se submetem a isso, pelos mais diferentes motivos (trabalho, insegurança...), também não são menos mulheres que outras. Não adianta não cair em um erro, pra cair em outro, acreditando que mulheres que se submetem a isso tudo são fúteis, não têm nada na cabeça, porque todas nós somos impelidas a isso. Algumas têm um olhar crítico sobre isso, mas ainda assim não deixam de cumprir certos rituais por medo, ou pelos mais variados motivos. E a enorme maioria não tem olhar crítico, porque somos levadas a realmente acreditar que uma mulher não depilada é porca, ou uma mulher sem maquiagem tem cara de doente, ou que uma mulher só usa cabelo curto se tiver câncer ou outra doença!


Não, Nelson. A gente só não quer ser mulher segundo os padrões dos homens.

ERRO NÚMERO 23: NÃO PERGUNTEM “VOCÊ TÁ DOENTE?” A MULHERES DE CABELO CURTO

Dito isso, fica evidente que o processo de desconstrução da feminilidade acontece em ritmos diferentes pra diferentes mulheres. Pra mim, foi muito fácil parar com tudo de uma vez, sem síndrome de abstinência! Pra outras mulheres, não é tão fácil. Muitas vivem disso, porque as profissões ligadas aos cuidados cosméticos são ocupadas predominantemente por mulheres. Enfim, não é fácil pra todas, pra algumas é muito difícil. A enorme maioria jamais problematizará nada disso.

E, certamente, uma mulher que esteja passando por um câncer já está fragilizada demais pra ainda querer mexer neste vespeiro que é a feminilidade. Não é o momento de se dizer que o cabelo raspado tá moderno, ou qualquer bobagem do tipo. E muito menos é momento de dizer que ela está a cara do Justin Bieber! Eu, quando tinha cabelo comprido, tinha pavor de ter qualquer doença que me fizesse ter que raspar ou cortar os cabelos! Agora, tenho um sidecut made at home, e um amigo perguntou se eu tinha operado a cabeça! Imagina então como se sentem as mulheres que realmente passam por isso, e ainda têm que responder a perguntas assim?

A verdade é que, se não fôssemos cobradas 24 horas por dia, 7 dias por semana, desde os 12 anos, com base nos rituais de feminilidade, haveria várias mulheres de cabeça raspada por aí, assim como há homens. Logo, ninguém acharia estranho uma mulher raspar a cabeça voluntariamente, ninguém perguntaria se aquela mulher tá doente (o que, no caso de mulheres que realmente estão doentes, acaba contribuindo pra elas piorarem!). O homem com câncer não sofre o mesmo estigma que a mulher com câncer, pois ninguém o diferencia na multidão pela falta de cabelo. Já viram aqueles meninos adolescentes fofos que, quando um colega de colégio tem câncer, todos raspam a cabeça? Mulheres não são unidas, jamais fazem isso pelas amigas! Óbvio, porque tem o mesmo peso pra uma mulher raspar a cabeça que tem pra um homem! Falsa simetria mandou lembranças pra quem disse isso.


Então, quando eu vi esse post na minha TL, me coloquei no lugar de todas as mulheres que tiveram/têm/terão câncer e passarão pelo que o personagem da Carolina Dieckmann passou nessa novela e pelo que a atriz, menos tragicamente, passou na vida real, já que ela realmente raspou a cabeça pro papel e, embora não tenha sofrido com o câncer, certamente deve ter sofrido pela perda dos cabelos, e pelo tanto de merda que deve ter ouvido.  

domingo, 12 de julho de 2015

JOGO DOS SETE MIL ERROS - 18-20


ERRO NÚMERO 18: MULHER SE VESTE PROS OUTROS, SIM

À primeira vista, esse post parece a favor das mulheres, já que ratifica a ideia, já falada aqui duas outras vezes, de que mulher não precisa de homem. Só que, embora Cinderela não queira um príncipe, ela quer um sapato e um vestido, pra se vestir exatamente como... “aquelas que querem um príncipe”!

Mas, eu não me visto pros homens, nem pra ninguém, me visto pra mim mesma. Sim, muitas mulheres dizem isso. Pergunta pra vocês: quantas de vocês já se arrumaram dos pés à cabeça, com tudo o que é necessário pra uma festa de gala, só pra ficar em casa vendo TV consigo mesma? Nenhuma, né? Quantas já colocaram vestido longo (e todos os apetrechos por baixo, “pra calcinha não marcar”, “pra barriga não marcar”, “pro sutiã não aparecer” etc), meia-calça, salto alto, maquiagem de noite e fizeram cabelo, pra ficar em casa tomando sorvete e lendo um livro? Quando não tem ninguém olhando, a gente quer mais é vestir algo confortável, como um moletom largo. Então, parem de mentir pros outros e, pior, parem de mentir pra si mesmas. A gente se arruma pro mundo, sim, porque, senão, sairíamos todo dia de moletom dos pés à cabeça.

Mas, se arrumar pro mundo não é o mesmo que se arrumar pros homens! Não, não é, mas é pelo menos 50% pros homens, já que eles são mais ou menos 50% da população mundial! Então, ao se arrumar “pro mundo”, você está, sim, agradando aos olhos masculinos. E, mais do que isso, está, sim, cumprindo a “tarefa”, que o patriarcado nos dá, de enfeitar o mundo; está, sim, cumprindo a tarefa de se portar como um objeto (e não um sujeito) delicado, fraco, e que precisa de ajuda pra tudo, porque mal consegue se mexer dentro do vestido e do sapato apertado; porque mal pode virar a cabeça pro lado “pra não bagunçar o cabelo”; porque não pode abrir a porta do carro “pra não quebrar a unha”; porque não pode suar “pra não borrar a maquiagem” etc.

ERRO NÚMERO 19: O SALTO-ALTO

A vestimenta tipicamente feminina, pra uma festa no estilo baile da Cinderela, é o ápice de um ritual de autotortura, auto-objetificação, automutilação, enfim, automodificação que beira a doença, isso quando não leva literalmente à doença. E o salto-alto é o ápice desse ápice!

Dizem que o salto-alto foi inventado por um homem, um daqueles Luíses, de França, que era baixinho e queria ficar mais alto. Ironicamente, ou nem tanto, os homens não aderiram à moda, e as mulheres, sim! Algum homem deve ter percebido o potencial de objetificação e de dominação do salto-alto, e pensou “vamos empurrar essa ideia pra cima delas”. De lá pra cá, a altura dos saltos só aumentou, proporcionalmente aos problemas de saúde das mulheres, e à sua dominação pelos homens.

Sapatos de salto-alto acabam com nossos pés. Já dizia a Rachel, de Friends, quando a Monica compra uma bota caríssima, mas que a faz literalmente sangrar: “Me dá a bota. Eu já não sinto meus pés há anos!”. Recentemente, um sujeito resolveu andar de salto-alto 24 horas, pra provar que mulheres reclamam demais. Não conseguiu aguentar a dor por 11 horas! Já perceberam que muitas mulheres de uma certa idade pra cima têm joanetes? Eu atribuo isso ao fato de que antigamente mulheres usavam salto quase o tempo todo, ou sapatos menos altos, mas de bico muito fino. “Felizmente”, a indústria dos tênis – com seus calçados multicoloridos de R$700,00, fabricados por escravos na China – acabou com isso. Mas, como ninguém vai de Nike a uma festa de formatura (a não ser alguns homens; sim, já vi homem de tênis em festa black-tie), ainda somos “obrigadas” a usar salto-alto em algumas ocasiões (algumas mulheres ainda são obrigadas a usar todo dia, dependendo de seus empregos).

Além dos problemas de saúde que podem causar, sem falar dos acidentes que também podem causar, sapatos de salto-alto facilitam a dominação masculina. Já tentou correr de salto alto? Fora as agentes da CIA e policiais de Nova Iorque de séries de TV, não conheço uma mulher que consiga correr de salto alto, facilitando, assim, que nos tornemos presas pra assaltantes e, principalmente, estupradores. Aliás, a própria Cinderela perde um dos sapatos, ao correr do príncipe, né? Sorte dela que ele tinha “as melhores intenções”, porque, se esse príncipe fosse um estuprador, Cinderela poderia nem ter sobrevivido e se tornado princesa.

Na última festa a que fui, há uns dois anos e meio, e quando eu ainda era feminista sem noção, simplesmente não conseguia andar com o sapato que tinha comprado especialmente pra festa. Devia ter comprado um mais confortável, oras! Bom, rodei TODAS as sapatarias da minha cidade e não encontrei nenhum sapato de salto “de festa” com o qual conseguisse andar. Será que se eu fosse à cidade vizinha teria encontrado, ou será que TODOS os sapatos de festa “femininos” são assim? Ah, você que não sabe usar salto! Ou seja, mulher “que é mulher” tem que aprender a andar de salto, lá pelos 12 anos, e, se não consegue, é culpa sua, não do fato de que esses sapatos não são feitos pra ninguém andar com eles nos pés! Enfim, fiquei sentada quase a festa toda, porque é meu estilo mesmo e porque, mesmo que quisesse, não conseguia dar mais de dez passos, e acabei a noite andando descalça por dois quarteirões, em plena rua 15, às 2:00 da manhã, com os sapatos na mão, porque já não conseguia mais dar um passo do carro até o hotel. Se algum dia eu for novamente a alguma festa assim, porque evito até não poder mais, dificilmente usarei um sapato de salto-alto. Aliás, dificilmente usarei um vestido de festa também. São caros e só podem ser usados uma vez, pra festas onde vão o mesmo público. Se bem que combinar um vestido de chifon com um coturno seria legal. Mas, acho que, se algum dia eu voltar a ir a festas, irei de roupa “de homem” mesmo.

ERRO NÚMERO 20: CINDERELA QUER É EQUIDADE!

Dizer que Cinderela não queria um príncipe, mas sim um sapato e um vestido, é dizer que Cinderela se conforma com muito, muito pouco. É trocar seis por meia dúzia, nas imposições que nos são feitas pelo patriarcado. É dizer que mulheres não precisam de homens, mas precisam de sapatos e roupas, mais do que de respeito, e outras coisinhas básicas. Cinderela quer é ganhar a mesma coisa que o príncipe, e não 30% menos. Cinderela quer é ter as mesmas oportunidades de estudo e trabalho. Cinderela quer é poder decidir sobre seu próprio corpo, e não tê-lo controlado pelo Estado. Cinderela quer é voltar da festa à meia-noite, desacompanhada, sem medo de ser atacada, E AINDA culpabilizada pela violência sofrida. Cinderela quer é ser forte e assertiva, sem ser, por isso, chamada de “masculina”, ou mal amada, ou mal comidzzzz... Cinderela quer é ser livre, como só homens podem ser. Cinderela quer, enfim, é ser reconhecida como ser humano, e não apenas como um objeto enfiado dentro de um sapato e de um vestido apertados.  

quarta-feira, 1 de julho de 2015

PARA MIA FARROW ou VENDE-SE COLEÇÃO DE DVDs

Uma das consequências mais difíceis da radicalização do meu feminismo, pra mim, foi passar a ver a arte com outros olhos. Sempre, desde criança, gostei muito de cinema e sou/era admiradora de vários diretores, no masculino mesmo, porque dentre eles não há nenhuma mulher. Em parte, graças a minha própria visão reprodutora de machismo, e em parte porque praticamente não existem diretoras de cinema. Consigo me lembrar de menos de dez nomes, ou seja, não dão pra preencher duas mãos, se contarmos nos dedos. Barbra Streisand, que é mais conhecida como atriz. Liliana Cavani, da qual só conheço um filme, e um filme que reproduz muito machismo. Penny Marshall, Nora Ephron, diretoras principalmente de comédias, portanto consideradas “menores”. E, além disso, seus filmes, em geral, também reproduzem muito machismo, como cai bem às comédias românticas. Tem aquela que ganhou o Oscar recentemente, cujo nome nem me lembro, e é mais conhecida por ter sido casada com James Cameron. Foi o primeiro Oscar dado a uma mulher por direção, e por um filme... reprodutor de machismo! Além de ser também conservador e ufanista. Há algumas atrizes que dirigem atualmente, como Angelina Jolie, mas nem lembro de outros exemplos. Pronto, são os nomes de que me lembro. Quase cabem em uma mão só. Nenhum nome nacional. Felizmente, essa raridade de mulheres na direção vem mudando, nem que seja à força. Recentemente, Natalie Portman exigiu que seu próximo filme, em que fará o papel da primeira mulher a chegar à suprema Corte estadunidense, fosse dirigido por uma mulher, o que parou as filmagens e chamou atenção pra escassez de diretoras em Hollywood, e no mundo todo.

O cinema foi a arte que mais me influenciou até hoje, mais que a própria literatura, que é meu ganha-pão. Já cheguei a ver 97 filmes em um mês! Foi o cinema que formou minha visão de mundo sobre muita coisa. E, aos 37 anos, me dar conta de que meus filmes favoritos são altamente misóginos é doloroso. Não só é doloroso, como deixa um vazio imenso, que precisaria ser preenchido por outras obras, mas onde estão elas? São poucas diretoras de cinema, e mesmo elas nem sempre fazem filmes com visões positivas das mulheres, porque estão dentro de uma indústria que não abre espaço pra isso. Mas, não é por isso que eu seguirei gostando de filmes que, hoje, me dizem muito mais do que me diziam antes, me dizem que são obras que exaltam homens e diminuem mulheres, me dizem que são obras que ajudam a naturalizar preconceitos, me dizem que seus autores são mais celebrados por serem homens do que realmente pelo conteúdo do que fazem, e me dizem que eu ria da minha própria desgraça sem nem perceber!

Não é apenas porque diretores como Woody Allen têm históricos de pedofilia e abuso em suas biografias. Eu mesma já o defendi, já chamei Mia Farrow de louca, já defendi Chaplin, já defendi Polanski, por não conseguir admitir que eu poderia admirar homens tão absurdamente misóginos, por não querer me “desapegar” de suas obras, e por não ter nada pra colocar no lugar delas também. Além disso, eu acreditava que a arte estaria acima de tudo e todos, e que a vida do artista nada teria a ver com a obra. Mas, a questão é que a vida transborda pras obras! Ou, nesse caso, as visões misóginas que os diretores têm em suas vidas particulares é tão gritante também em suas obras, que não dá pra ignorar. Mas, minha cegueira não me permitia ver isso. E me fazia rir de piada de estupro, só pra dar um exemplo do que tô falando. E, ainda, me fazia achar a pessoa que fez a piada de estupro um gênio! Mas, não dá pra criticar o Danilo Gentili por isso e continuar admirando o Woody Allen, só porque ele é considerado gênio, só porque há um apego nostálgico meu, e uma dificuldade em admitir que, sim, eu gostava de coisas que hoje desprezo. Só porque ali, junto da piada de estupro, tem também algumas valiosas lições universais sobre a vida e a arte e a morte, e esses assuntos sobre os quais só homens brancos podem falar, pois só eles são o tal sujeito universal acima de tudo e todos.

Meu cérebro é meu segundo órgão favorito.

Aqui cabe explicar por que escolhi Woody Allen para focar nesse texto, e não outro diretor. Não, não é apenas porque sua biografia já seria suficiente pra engendrar várias críticas. Vou me ater exclusivamente à obra aqui. Em parte, é porque, dos meus favoritos, só ele e Almodóvar ainda dirigem. E é, acima de tudo, porque sempre foi meu diretor favorito, meu filme favorito era dele, e porque vi TODOS os seus quarenta e tantos filmes. Sim, todos. Alguns apenas uma vez, alguns mais de vinte vezes. Então, realmente tive acesso à obra pra poder falar dela. Mas, o que direi aqui sobre seus filmes poderia ser facilmente dito sobre os filmes de meus outros favoritos: Buñuel, Billy Wilder, Chaplin, Truffaut, só pra citar alguns. E também poderia ser dito de escritores, músicos, pintores, enfim, artistas em geral.

Voltando à relação vida-obra, ainda que eu estivesse disposta a fazer vista grossa pra biografia no mínimo controversa de Woody allen, nenhuma defesa sobrevive a uma re-visão dos filmes. Outro dia, estava passando Memórias e, nos 15 minutos em que tolerei rever um pouco, houve piada de estupro (no estilo “uma mulher feia assim tinha que agradecer ser estuprada”); houve piada diminuindo mulher pela sua aparência; houve objetificação (da Sharon Stone, ainda estreante, aparecendo como um mero objeto que chama a atenção do personagem do Woody); houve uma acusação da personagem que era casada com o personagem do Woody sobre ele estar paquerando sua prima de 13 anos, e ele usando gaslighting pra dizer que a mulher que estava vendo coisas; e houve toda uma narrativa construída pra dizer que outra mulher o estava obrigando a se casar. Enfim, desliguei a TV e fui dormir, me perguntando como eu via isso, e não percebia, e ria, e gostava de obras tão preenchidas por ofensas misóginas. Portanto, não se trata de simplesmente desprezar obras porque foram feitas por homens, ou desprezar obras com base na biografia do artista, mas sim de desprezar obras que têm, sim, nelas mesmas, mensagens desprezíveis.

Não estou dizendo que todas as obras de Woody são misóginas. Há momentos bons aqui e ali. De trás pra frente e apenas o que me lembro de cabeça, Meia-Noite em Paris é lindo e toca numa questão que me intriga, que é a nostalgia de uma época que não vivemos; Trapaceiros tem os melhores primeiros 30 minutos de um filme, embora depois desande; Tiros na Broadway também tem uma discussão que me interessa, sobre vida e arte, e Neblina e Sombras também, além de falar da nossa necessidade da arte; A Rosa Púrpura do Cairo também trata lindamente dessas questões e era meu favorito; Hannah e suas irmãs tem, justamente na sequência estrelada por Woody, uma dos melhores momentos do cinema sobre a busca do sentido da vida; Na Era do Rádio mostra uma linda e nostálgica visão da infância; Zelig é um mockumentário muito bom sobre a nossa necessidade de aceitação no mundo. Pode até haver momentos “geniais” nesses filmes, mas, mesmo esses que citei, têm, também, momentos muito infelizes. E, no fim das contas, fica a pergunta: vale a pena? Vale a pena fazer vista grossa pra tantas ofensas? Apenas pra exaltar a obra de um homem que odeia mulheres?

Estou sempre pensando em fuder todas as mulheres que conheço. 

Vale a pena fazer vista grossa pra exaltação de relações abusivas entre homens velhos e meninas novas? Desde Manhattan, essa é uma constante na obra de Woody. No filme, ele tem 42 anos e namora uma aluna de ensino médio, interpretada pela Mariel Hemingway (neta de outro notório misógino). Outro dia, vi uma entrevista com a atriz, em que ela dizia que Woody teve toda a paciência com ela na época, e que ele se dispôs a se tornar amigo dela fora das câmeras pra ajudá-la com a personagem, que exigia uma maturidade cultural que ela não tinha. Tão altruísta ele! Dispôs-se a mostrar a ela os museus de NY, as galerias etc, pra “guiá-la” na construção da personagem. Ou seja, não basta fazer um filme que fala de meninas manipuladas por velhos, tem que manipular a atriz de 19 anos na vida real também! Não basta ser condescendente com mulher nos filmes, tem que ser na vida real também! Fora que ninguém vai me convencer, sabendo do que sei dele hoje, que ele não tava era querendo um caso com ela na vida real também (mas isso não vem ao caso, porque é capaz de desmerecerem todo o meu texto com base nisso, que dirão ser “acusações sem embasamento”, e são mesmo, então retiro essa parte). Depois desse filme, a temática foi uma constante na obra de Woody: Hannah e Suas Irmãs, Maridos e Esposas, Poderosa Afrodite, Whatever Works. Não vou entrar em detalhes sobre todos eles, porque acho que a ideia geral já ficou óbvia.

Vale a pena fazer vista grossa pro fato que, em pelo menos dois filmes, homens cometem feminicídio e saem impunes? Não estou falando apenas de homens que matam mulheres, mas de feminicídio mesmo. Em Crimes e Pecados, o personagem do Martin Landau mata a amante depois que ela começa a exigir que ele cumpra suas promessas, como a de se separar da esposa. A amante, interpretada por Angelica Huston (filha de outro notório misógino, e ex-mulher de outro), lembra a ele, inclusive, que deixou uma carreira promissora por ele. Então, o que ela merece agora? A morte, óbvio. E ele? A impunidade. Esse, pelo menos, se corrói com a culpa pelo que fez, embora isso não seja suficiente pra ele se entregar e cumprir sua pena. Já em Match Point, nem isso. O personagem do Jonathan Rhys Meyers mata não só uma, mas duas mulheres. Uma delas, sua amante, que também estava começando a “colocar as asinhas de fora”, e outra, uma velinha, apenas por queima de arquivo, pra parecer que foi tudo um assalto. Também sai impune, e nem culpa sente. Mas, ele tá só mostrando como é o mundo! Será? Ou será que ele tá ajudando a naturalizar essa violência, quase dizendo que mulheres que são amantes de homens casados merecem esse fim? E também não consigo não ver aí um desejo escondido do próprio Woody de matar alguma mulher (Mia Farrow, talvez?) e sair impune. Já que não dá pra ser na vida, que seja na arte. Duas vezes. E mais uma velinha de troco aí, pra compensar por não poder matar de verdade.

- Por quê? Eu me divorciei porque minha mulher me deixou por outra mulher.
- Nossa, deve ter sido desmoralizante.
- Eu levei na boa, considerando-se as circunstâncias. Eu tentei atropelá-las. 

Vale a pena fazer vista grossa pro fato que, em nenhum filme de que me lembre, nenhuma personagem mulher faz nada brilhante, como os personagens homens? Nenhuma mulher é jamais uma escritora ou diretora bem sucedida, e os filmes de Woody são repletos de escritores e dietores brilhantes. As únicas mulheres bem sucedidas em alguns filmes são atrizes, por exemplo, ou têm outras profissões em que mulheres, muitas vezes, se destacam apenas por terem beleza ou serem cuidadosas. A que chega mais perto de ser bem sucedida como os homens é a psiquiatra de Zelig, interpretada por Mia Farrow, mas, de qualquer forma, ela passa o filme todo em função da doença do homem, Zelig, de quem não só ela cuida como paciente, mas se envolve também com ele num relacionamento.

Vale a pena fazer vista grossa pra tanta misoginia? Pra piada de estupro, como já citado? Pra piadas que colocam mulheres como histéricas, loucas, nervosas? Pras insinuações de que homens só não evoluem em suas carreiras por causa das mulheres com quem estão, outra constante na obra do diretor? Pras representações de mulheres como seres competitivos entre si, em quem nem as amigas ou irmãs podem confiar, outra constante? Pras insinuações de que mulheres são seres ardilosos, vingativos e que fazem o que podem pra destruir um homem?


Vale a pena? Já dizia um outro grande misógino que “tudo vale a pena, se a alma não é pequena”. Quem sou eu pra contrariar, né? Só uma mulherzinha de alma pequena, que não consegue (mais) enxergar a grandiosidade desses grandes homens.