quarta-feira, 1 de julho de 2015

PARA MIA FARROW ou VENDE-SE COLEÇÃO DE DVDs

Uma das consequências mais difíceis da radicalização do meu feminismo, pra mim, foi passar a ver a arte com outros olhos. Sempre, desde criança, gostei muito de cinema e sou/era admiradora de vários diretores, no masculino mesmo, porque dentre eles não há nenhuma mulher. Em parte, graças a minha própria visão reprodutora de machismo, e em parte porque praticamente não existem diretoras de cinema. Consigo me lembrar de menos de dez nomes, ou seja, não dão pra preencher duas mãos, se contarmos nos dedos. Barbra Streisand, que é mais conhecida como atriz. Liliana Cavani, da qual só conheço um filme, e um filme que reproduz muito machismo. Penny Marshall, Nora Ephron, diretoras principalmente de comédias, portanto consideradas “menores”. E, além disso, seus filmes, em geral, também reproduzem muito machismo, como cai bem às comédias românticas. Tem aquela que ganhou o Oscar recentemente, cujo nome nem me lembro, e é mais conhecida por ter sido casada com James Cameron. Foi o primeiro Oscar dado a uma mulher por direção, e por um filme... reprodutor de machismo! Além de ser também conservador e ufanista. Há algumas atrizes que dirigem atualmente, como Angelina Jolie, mas nem lembro de outros exemplos. Pronto, são os nomes de que me lembro. Quase cabem em uma mão só. Nenhum nome nacional. Felizmente, essa raridade de mulheres na direção vem mudando, nem que seja à força. Recentemente, Natalie Portman exigiu que seu próximo filme, em que fará o papel da primeira mulher a chegar à suprema Corte estadunidense, fosse dirigido por uma mulher, o que parou as filmagens e chamou atenção pra escassez de diretoras em Hollywood, e no mundo todo.

O cinema foi a arte que mais me influenciou até hoje, mais que a própria literatura, que é meu ganha-pão. Já cheguei a ver 97 filmes em um mês! Foi o cinema que formou minha visão de mundo sobre muita coisa. E, aos 37 anos, me dar conta de que meus filmes favoritos são altamente misóginos é doloroso. Não só é doloroso, como deixa um vazio imenso, que precisaria ser preenchido por outras obras, mas onde estão elas? São poucas diretoras de cinema, e mesmo elas nem sempre fazem filmes com visões positivas das mulheres, porque estão dentro de uma indústria que não abre espaço pra isso. Mas, não é por isso que eu seguirei gostando de filmes que, hoje, me dizem muito mais do que me diziam antes, me dizem que são obras que exaltam homens e diminuem mulheres, me dizem que são obras que ajudam a naturalizar preconceitos, me dizem que seus autores são mais celebrados por serem homens do que realmente pelo conteúdo do que fazem, e me dizem que eu ria da minha própria desgraça sem nem perceber!

Não é apenas porque diretores como Woody Allen têm históricos de pedofilia e abuso em suas biografias. Eu mesma já o defendi, já chamei Mia Farrow de louca, já defendi Chaplin, já defendi Polanski, por não conseguir admitir que eu poderia admirar homens tão absurdamente misóginos, por não querer me “desapegar” de suas obras, e por não ter nada pra colocar no lugar delas também. Além disso, eu acreditava que a arte estaria acima de tudo e todos, e que a vida do artista nada teria a ver com a obra. Mas, a questão é que a vida transborda pras obras! Ou, nesse caso, as visões misóginas que os diretores têm em suas vidas particulares é tão gritante também em suas obras, que não dá pra ignorar. Mas, minha cegueira não me permitia ver isso. E me fazia rir de piada de estupro, só pra dar um exemplo do que tô falando. E, ainda, me fazia achar a pessoa que fez a piada de estupro um gênio! Mas, não dá pra criticar o Danilo Gentili por isso e continuar admirando o Woody Allen, só porque ele é considerado gênio, só porque há um apego nostálgico meu, e uma dificuldade em admitir que, sim, eu gostava de coisas que hoje desprezo. Só porque ali, junto da piada de estupro, tem também algumas valiosas lições universais sobre a vida e a arte e a morte, e esses assuntos sobre os quais só homens brancos podem falar, pois só eles são o tal sujeito universal acima de tudo e todos.

Meu cérebro é meu segundo órgão favorito.

Aqui cabe explicar por que escolhi Woody Allen para focar nesse texto, e não outro diretor. Não, não é apenas porque sua biografia já seria suficiente pra engendrar várias críticas. Vou me ater exclusivamente à obra aqui. Em parte, é porque, dos meus favoritos, só ele e Almodóvar ainda dirigem. E é, acima de tudo, porque sempre foi meu diretor favorito, meu filme favorito era dele, e porque vi TODOS os seus quarenta e tantos filmes. Sim, todos. Alguns apenas uma vez, alguns mais de vinte vezes. Então, realmente tive acesso à obra pra poder falar dela. Mas, o que direi aqui sobre seus filmes poderia ser facilmente dito sobre os filmes de meus outros favoritos: Buñuel, Billy Wilder, Chaplin, Truffaut, só pra citar alguns. E também poderia ser dito de escritores, músicos, pintores, enfim, artistas em geral.

Voltando à relação vida-obra, ainda que eu estivesse disposta a fazer vista grossa pra biografia no mínimo controversa de Woody allen, nenhuma defesa sobrevive a uma re-visão dos filmes. Outro dia, estava passando Memórias e, nos 15 minutos em que tolerei rever um pouco, houve piada de estupro (no estilo “uma mulher feia assim tinha que agradecer ser estuprada”); houve piada diminuindo mulher pela sua aparência; houve objetificação (da Sharon Stone, ainda estreante, aparecendo como um mero objeto que chama a atenção do personagem do Woody); houve uma acusação da personagem que era casada com o personagem do Woody sobre ele estar paquerando sua prima de 13 anos, e ele usando gaslighting pra dizer que a mulher que estava vendo coisas; e houve toda uma narrativa construída pra dizer que outra mulher o estava obrigando a se casar. Enfim, desliguei a TV e fui dormir, me perguntando como eu via isso, e não percebia, e ria, e gostava de obras tão preenchidas por ofensas misóginas. Portanto, não se trata de simplesmente desprezar obras porque foram feitas por homens, ou desprezar obras com base na biografia do artista, mas sim de desprezar obras que têm, sim, nelas mesmas, mensagens desprezíveis.

Não estou dizendo que todas as obras de Woody são misóginas. Há momentos bons aqui e ali. De trás pra frente e apenas o que me lembro de cabeça, Meia-Noite em Paris é lindo e toca numa questão que me intriga, que é a nostalgia de uma época que não vivemos; Trapaceiros tem os melhores primeiros 30 minutos de um filme, embora depois desande; Tiros na Broadway também tem uma discussão que me interessa, sobre vida e arte, e Neblina e Sombras também, além de falar da nossa necessidade da arte; A Rosa Púrpura do Cairo também trata lindamente dessas questões e era meu favorito; Hannah e suas irmãs tem, justamente na sequência estrelada por Woody, uma dos melhores momentos do cinema sobre a busca do sentido da vida; Na Era do Rádio mostra uma linda e nostálgica visão da infância; Zelig é um mockumentário muito bom sobre a nossa necessidade de aceitação no mundo. Pode até haver momentos “geniais” nesses filmes, mas, mesmo esses que citei, têm, também, momentos muito infelizes. E, no fim das contas, fica a pergunta: vale a pena? Vale a pena fazer vista grossa pra tantas ofensas? Apenas pra exaltar a obra de um homem que odeia mulheres?

Estou sempre pensando em fuder todas as mulheres que conheço. 

Vale a pena fazer vista grossa pra exaltação de relações abusivas entre homens velhos e meninas novas? Desde Manhattan, essa é uma constante na obra de Woody. No filme, ele tem 42 anos e namora uma aluna de ensino médio, interpretada pela Mariel Hemingway (neta de outro notório misógino). Outro dia, vi uma entrevista com a atriz, em que ela dizia que Woody teve toda a paciência com ela na época, e que ele se dispôs a se tornar amigo dela fora das câmeras pra ajudá-la com a personagem, que exigia uma maturidade cultural que ela não tinha. Tão altruísta ele! Dispôs-se a mostrar a ela os museus de NY, as galerias etc, pra “guiá-la” na construção da personagem. Ou seja, não basta fazer um filme que fala de meninas manipuladas por velhos, tem que manipular a atriz de 19 anos na vida real também! Não basta ser condescendente com mulher nos filmes, tem que ser na vida real também! Fora que ninguém vai me convencer, sabendo do que sei dele hoje, que ele não tava era querendo um caso com ela na vida real também (mas isso não vem ao caso, porque é capaz de desmerecerem todo o meu texto com base nisso, que dirão ser “acusações sem embasamento”, e são mesmo, então retiro essa parte). Depois desse filme, a temática foi uma constante na obra de Woody: Hannah e Suas Irmãs, Maridos e Esposas, Poderosa Afrodite, Whatever Works. Não vou entrar em detalhes sobre todos eles, porque acho que a ideia geral já ficou óbvia.

Vale a pena fazer vista grossa pro fato que, em pelo menos dois filmes, homens cometem feminicídio e saem impunes? Não estou falando apenas de homens que matam mulheres, mas de feminicídio mesmo. Em Crimes e Pecados, o personagem do Martin Landau mata a amante depois que ela começa a exigir que ele cumpra suas promessas, como a de se separar da esposa. A amante, interpretada por Angelica Huston (filha de outro notório misógino, e ex-mulher de outro), lembra a ele, inclusive, que deixou uma carreira promissora por ele. Então, o que ela merece agora? A morte, óbvio. E ele? A impunidade. Esse, pelo menos, se corrói com a culpa pelo que fez, embora isso não seja suficiente pra ele se entregar e cumprir sua pena. Já em Match Point, nem isso. O personagem do Jonathan Rhys Meyers mata não só uma, mas duas mulheres. Uma delas, sua amante, que também estava começando a “colocar as asinhas de fora”, e outra, uma velinha, apenas por queima de arquivo, pra parecer que foi tudo um assalto. Também sai impune, e nem culpa sente. Mas, ele tá só mostrando como é o mundo! Será? Ou será que ele tá ajudando a naturalizar essa violência, quase dizendo que mulheres que são amantes de homens casados merecem esse fim? E também não consigo não ver aí um desejo escondido do próprio Woody de matar alguma mulher (Mia Farrow, talvez?) e sair impune. Já que não dá pra ser na vida, que seja na arte. Duas vezes. E mais uma velinha de troco aí, pra compensar por não poder matar de verdade.

- Por quê? Eu me divorciei porque minha mulher me deixou por outra mulher.
- Nossa, deve ter sido desmoralizante.
- Eu levei na boa, considerando-se as circunstâncias. Eu tentei atropelá-las. 

Vale a pena fazer vista grossa pro fato que, em nenhum filme de que me lembre, nenhuma personagem mulher faz nada brilhante, como os personagens homens? Nenhuma mulher é jamais uma escritora ou diretora bem sucedida, e os filmes de Woody são repletos de escritores e dietores brilhantes. As únicas mulheres bem sucedidas em alguns filmes são atrizes, por exemplo, ou têm outras profissões em que mulheres, muitas vezes, se destacam apenas por terem beleza ou serem cuidadosas. A que chega mais perto de ser bem sucedida como os homens é a psiquiatra de Zelig, interpretada por Mia Farrow, mas, de qualquer forma, ela passa o filme todo em função da doença do homem, Zelig, de quem não só ela cuida como paciente, mas se envolve também com ele num relacionamento.

Vale a pena fazer vista grossa pra tanta misoginia? Pra piada de estupro, como já citado? Pra piadas que colocam mulheres como histéricas, loucas, nervosas? Pras insinuações de que homens só não evoluem em suas carreiras por causa das mulheres com quem estão, outra constante na obra do diretor? Pras representações de mulheres como seres competitivos entre si, em quem nem as amigas ou irmãs podem confiar, outra constante? Pras insinuações de que mulheres são seres ardilosos, vingativos e que fazem o que podem pra destruir um homem?


Vale a pena? Já dizia um outro grande misógino que “tudo vale a pena, se a alma não é pequena”. Quem sou eu pra contrariar, né? Só uma mulherzinha de alma pequena, que não consegue (mais) enxergar a grandiosidade desses grandes homens.  

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