Uma das consequências
mais difíceis da radicalização do meu
feminismo, pra mim, foi passar a ver a arte com outros olhos.
Sempre, desde criança, gostei muito de cinema e sou/era admiradora
de vários diretores, no masculino mesmo, porque dentre eles não há
nenhuma mulher. Em parte, graças a minha própria visão reprodutora
de machismo, e em parte porque praticamente não existem diretoras de
cinema. Consigo me lembrar de menos de dez nomes, ou seja, não dão
pra preencher duas mãos, se contarmos nos dedos. Barbra Streisand,
que é mais conhecida como atriz. Liliana Cavani, da qual só conheço
um filme, e um filme que reproduz muito machismo. Penny Marshall,
Nora Ephron, diretoras principalmente de comédias, portanto
consideradas “menores”. E, além disso, seus filmes, em geral,
também reproduzem muito machismo, como cai bem às comédias
românticas. Tem aquela que ganhou o Oscar recentemente, cujo nome
nem me lembro, e é mais conhecida por ter sido casada com James
Cameron. Foi o primeiro Oscar dado a uma mulher por direção, e por
um filme... reprodutor de machismo! Além de ser também conservador
e ufanista. Há algumas atrizes que dirigem atualmente, como Angelina
Jolie, mas nem lembro de outros exemplos. Pronto, são os nomes de
que me lembro. Quase cabem em uma mão só. Nenhum nome nacional.
Felizmente, essa raridade de mulheres na direção vem mudando, nem
que seja à força. Recentemente, Natalie Portman exigiu que seu
próximo filme, em que fará o papel da primeira mulher a chegar à
suprema Corte estadunidense, fosse dirigido por uma mulher, o que
parou as filmagens e chamou atenção pra escassez de diretoras em
Hollywood, e no mundo todo.
O cinema foi a arte que
mais me influenciou até hoje, mais que a própria literatura, que é
meu ganha-pão. Já cheguei a ver 97 filmes em um mês! Foi o cinema
que formou minha visão de mundo sobre muita coisa. E, aos 37 anos,
me dar conta de que meus filmes favoritos são altamente misóginos é
doloroso. Não só é doloroso, como deixa um vazio imenso, que
precisaria ser preenchido por outras obras, mas onde estão elas? São
poucas diretoras de cinema, e mesmo elas nem sempre fazem filmes com
visões positivas das mulheres, porque estão dentro de uma indústria
que não abre espaço pra isso. Mas, não é por isso que eu seguirei
gostando de filmes que, hoje, me dizem muito mais do que me diziam
antes, me dizem que são obras que exaltam homens e diminuem
mulheres, me dizem que são obras que ajudam a naturalizar
preconceitos, me dizem que seus autores são mais celebrados por
serem homens do que realmente pelo conteúdo do que fazem, e me dizem
que eu ria da minha própria desgraça sem nem perceber!
Não é apenas porque
diretores como Woody Allen têm históricos de pedofilia e abuso em
suas biografias. Eu mesma já o defendi, já chamei Mia Farrow de
louca, já defendi Chaplin, já defendi Polanski, por não conseguir
admitir que eu poderia admirar homens tão absurdamente misóginos,
por não querer me “desapegar” de suas obras, e por não ter nada
pra colocar no lugar delas também. Além disso, eu acreditava que a
arte estaria acima de tudo e todos, e que a vida do artista nada
teria a ver com a obra. Mas, a questão é que a vida transborda pras
obras! Ou, nesse caso, as visões misóginas que os diretores têm em
suas vidas particulares é tão gritante também em suas obras, que
não dá pra ignorar. Mas, minha cegueira não me permitia ver isso.
E me fazia rir de piada de estupro, só pra dar um exemplo do que tô
falando. E, ainda, me fazia achar a pessoa que fez a piada de estupro
um gênio! Mas, não dá pra criticar o Danilo Gentili por isso e
continuar admirando o Woody Allen, só porque ele é considerado
gênio, só porque há um apego nostálgico meu, e uma dificuldade em
admitir que, sim, eu gostava de coisas que hoje desprezo. Só porque
ali, junto da piada de estupro, tem também algumas valiosas lições
universais sobre a vida e a arte e a morte, e esses assuntos sobre os
quais só homens brancos podem falar, pois só eles são o tal
sujeito universal acima de tudo e todos.
Meu cérebro é meu segundo órgão favorito.
Aqui cabe explicar por
que escolhi Woody Allen para focar nesse texto, e não outro diretor.
Não, não é apenas porque sua biografia já seria suficiente pra
engendrar várias críticas. Vou me ater exclusivamente à obra aqui.
Em parte, é porque, dos meus favoritos, só ele e Almodóvar ainda
dirigem. E é, acima de tudo, porque sempre foi meu diretor favorito,
meu filme favorito era dele, e porque vi TODOS os seus quarenta e
tantos filmes. Sim, todos. Alguns apenas uma vez, alguns mais de
vinte vezes. Então, realmente tive acesso à obra pra poder falar
dela. Mas, o que direi aqui sobre seus filmes poderia ser facilmente
dito sobre os filmes de meus outros favoritos: Buñuel, Billy Wilder,
Chaplin, Truffaut, só pra citar alguns. E também poderia ser dito
de escritores, músicos, pintores, enfim, artistas em geral.
Voltando à relação
vida-obra, ainda que eu estivesse disposta a fazer vista grossa pra
biografia no mínimo controversa de Woody allen, nenhuma defesa
sobrevive a uma re-visão dos filmes. Outro dia, estava passando
Memórias e, nos 15 minutos em que tolerei rever um pouco,
houve piada de estupro (no estilo “uma mulher feia assim tinha que
agradecer ser estuprada”); houve piada diminuindo mulher pela sua
aparência; houve objetificação (da Sharon Stone, ainda estreante,
aparecendo como um mero objeto que chama a atenção do personagem do
Woody); houve uma acusação da personagem que era casada com o
personagem do Woody sobre ele estar paquerando sua prima de 13 anos,
e ele usando gaslighting pra dizer que a mulher que estava
vendo coisas; e houve toda uma narrativa construída pra dizer que
outra mulher o estava obrigando a se casar. Enfim, desliguei a TV e
fui dormir, me perguntando como eu via isso, e não percebia, e ria,
e gostava de obras tão preenchidas por ofensas misóginas. Portanto,
não se trata de simplesmente desprezar obras porque foram feitas por
homens, ou desprezar obras com base na biografia do artista, mas sim
de desprezar obras que têm, sim, nelas mesmas, mensagens
desprezíveis.
Não estou dizendo que
todas as obras de Woody são misóginas. Há momentos bons aqui e
ali. De trás pra frente e apenas o que me lembro de cabeça,
Meia-Noite em Paris é lindo e toca numa questão que me
intriga, que é a nostalgia de uma época que não vivemos;
Trapaceiros tem os melhores primeiros 30 minutos de um filme,
embora depois desande; Tiros na Broadway também tem uma
discussão que me interessa, sobre vida e arte, e Neblina e
Sombras também, além de falar da nossa necessidade da arte; A
Rosa Púrpura do Cairo também trata lindamente dessas questões
e era meu favorito; Hannah e suas irmãs tem, justamente na
sequência estrelada por Woody, uma dos melhores momentos do cinema
sobre a busca do sentido da vida; Na Era do Rádio mostra uma
linda e nostálgica visão da infância; Zelig é um
mockumentário muito bom sobre a nossa necessidade de aceitação no
mundo. Pode até haver momentos “geniais” nesses filmes, mas,
mesmo esses que citei, têm, também, momentos muito infelizes. E, no
fim das contas, fica a pergunta: vale a pena? Vale a pena fazer vista
grossa pra tantas ofensas? Apenas pra exaltar a obra de um homem que
odeia mulheres?
Estou sempre pensando em fuder todas as mulheres que conheço.
Vale a pena fazer vista
grossa pra exaltação de relações abusivas entre homens velhos e
meninas novas? Desde Manhattan, essa é uma constante na obra
de Woody. No filme, ele tem 42 anos e namora uma aluna de ensino
médio, interpretada pela Mariel Hemingway (neta de outro notório
misógino). Outro dia, vi uma entrevista com a atriz, em que ela
dizia que Woody teve toda a paciência com ela na época, e que ele
se dispôs a se tornar amigo dela fora das câmeras pra ajudá-la com
a personagem, que exigia uma maturidade cultural que ela não tinha.
Tão altruísta ele! Dispôs-se a mostrar a ela os museus de NY, as
galerias etc, pra “guiá-la” na construção da personagem. Ou
seja, não basta fazer um filme que fala de meninas manipuladas por
velhos, tem que manipular a atriz de 19 anos na vida real também!
Não basta ser condescendente com mulher nos filmes, tem que ser na
vida real também! Fora que ninguém vai me convencer, sabendo do que
sei dele hoje, que ele não tava era querendo um caso com ela na vida
real também (mas isso não vem ao caso, porque é capaz de
desmerecerem todo o meu texto com base nisso, que dirão ser
“acusações sem embasamento”, e são mesmo, então retiro essa
parte). Depois desse filme, a temática foi uma constante na obra de
Woody: Hannah e Suas Irmãs, Maridos e Esposas,
Poderosa Afrodite, Whatever Works. Não vou entrar em
detalhes sobre todos eles, porque acho que a ideia geral já ficou
óbvia.
Vale a pena fazer vista
grossa pro fato que, em pelo menos dois filmes, homens cometem
feminicídio e saem impunes? Não estou falando apenas de homens que
matam mulheres, mas de feminicídio mesmo. Em Crimes e Pecados,
o personagem do Martin Landau mata a amante depois que ela começa a
exigir que ele cumpra suas promessas, como a de se separar da esposa.
A amante, interpretada por Angelica Huston (filha de outro notório
misógino, e ex-mulher de outro), lembra a ele, inclusive, que deixou
uma carreira promissora por ele. Então, o que ela merece agora? A
morte, óbvio. E ele? A impunidade. Esse, pelo menos, se corrói com
a culpa pelo que fez, embora isso não seja suficiente pra ele se
entregar e cumprir sua pena. Já em Match Point, nem isso. O
personagem do Jonathan Rhys Meyers mata não só uma, mas duas
mulheres. Uma delas, sua amante, que também estava começando a
“colocar as asinhas de fora”, e outra, uma velinha, apenas por
queima de arquivo, pra parecer que foi tudo um assalto. Também sai
impune, e nem culpa sente. Mas, ele tá só mostrando como é o
mundo! Será? Ou será que ele tá ajudando a naturalizar essa
violência, quase dizendo que mulheres que são amantes de homens
casados merecem esse fim? E também não consigo não ver aí um
desejo escondido do próprio Woody de matar alguma mulher (Mia
Farrow, talvez?) e sair impune. Já que não dá pra ser na vida, que
seja na arte. Duas vezes. E mais uma velinha de troco aí, pra
compensar por não poder matar de verdade.
- Por quê? Eu me divorciei porque minha mulher me deixou por outra mulher.
- Nossa, deve ter sido desmoralizante.
- Eu levei na boa, considerando-se as circunstâncias. Eu tentei atropelá-las.
Vale a pena fazer vista
grossa pro fato que, em nenhum filme de que me lembre, nenhuma
personagem mulher faz nada brilhante, como os personagens homens?
Nenhuma mulher é jamais uma escritora ou diretora bem sucedida, e os
filmes de Woody são repletos de escritores e dietores brilhantes. As
únicas mulheres bem sucedidas em alguns filmes são atrizes, por
exemplo, ou têm outras profissões em que mulheres, muitas vezes, se
destacam apenas por terem beleza ou serem cuidadosas. A que chega
mais perto de ser bem sucedida como os homens é a psiquiatra de
Zelig, interpretada por Mia
Farrow, mas, de qualquer forma, ela passa o filme todo em função da
doença do homem, Zelig, de quem não só ela cuida como paciente,
mas se envolve também com ele num relacionamento.
Vale a pena fazer vista
grossa pra tanta misoginia? Pra
piada de estupro, como já citado? Pra piadas que colocam mulheres
como histéricas, loucas, nervosas? Pras insinuações de que homens
só não evoluem em suas carreiras por causa das mulheres com quem
estão, outra constante na obra do diretor? Pras representações de
mulheres como seres competitivos entre si, em quem nem as amigas ou
irmãs podem confiar, outra constante? Pras insinuações de que
mulheres são seres ardilosos, vingativos e que fazem o que podem pra
destruir um homem?
Vale a pena? Já dizia
um outro grande misógino que “tudo vale a pena, se a alma não é
pequena”. Quem sou eu pra contrariar, né? Só uma mulherzinha de
alma pequena, que não consegue (mais) enxergar a grandiosidade
desses grandes homens.
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