domingo, 3 de maio de 2015

RADICAL, SIM, OBRIGADA!

Eu sempre fui feminista. Muito antes de virar “moda”. Mas, eu nunca fui feminista. Não antes de redescobrir o feminismo, graças a essa “moda”.

Eu sempre achei que mulher deve trabalhar e ganhar o mesmo que homens, óbvio. São poucas as pessoas que conseguem ir contra essa ideia hoje em dia sem serem consideradas, no mínimo, ridículas. E que o trabalho doméstico deve ser dividido igualmente. E, aí já começa a complicar, né? Eu ficava indignada ao ver as colegas de trabalho que, antes de viajarem para passar a noite em outra cidade e trabalhar no dia seguinte, deixavam o almoço pronto pra todos os dias em que estariam fora! Também achava um absurdo que elas lavassem toda a roupa da casa, e fizessem toda a faxina etc. Com certeza, porque minha criação de classe média alta não foi pra nada disso, já que minha mãe sempre trabalhou fora e nunca fez questão de que a gente aprendesse a fazer nada em casa, pois sabia que nós trabalharíamos fora também. Também não me casei com um boçal que exigisse nada disso. Muito pelo contrário, quando alguém faz algo em casa, é ele. Então, eu concluía que a culpa daquilo tudo era das próprias mulheres que se casaram com esses trastes e que, portanto, gostam da situação péssima de dupla ou tripla jornada em que se encontram.

Eu nunca culpei uma mulher pelo próprio abuso, mas pensava “por que não se cuidou? Por que estava andando sozinha na rua a essas horas? Por que usou saia tão curta? Por que bebeu? Por que foi pra casa de estranhos?” O que dá no mesmo que culpar a mulher pelo próprio abuso. Eu me cuidava, eu nunca andava sozinha a certas horas, eu não usava saia curta, eu não bebia, eu não ia a casa de estranhos. Logo, eu estava safa e essas bobas só tiveram o que procuravam, ou foram ingênuas de não se cuidarem.

Eu acreditava que eu, inteligente e superior a outras mulheres, tinha tomado decisões individuais na vida que tinham permitido que eu escapasse de todas essas ciladas. Eu acreditava que tudo se devia a indivíduos resolvendo individualmente suas questões. Eu acreditava que o feminismo já tinha feito o que tinha que fazer e restava a nós agora apenas manter essas conquistas, escolhendo bem, e individualmente, condições que nos permitissem não cair em ciladas como as narradas acima.

Eu era feminista liberal e não sabia.

Eu não via que o que está por trás dessas questões é algo muito mais profundo, sistêmico, e que não pode ser combatido no nível individual, ainda que pequenas “revoluções” pessoais sejam possíveis e benvindas. Eu não via que as “escolhas” feitas por mim não são, nem nunca foram, “livres”, assim como as feitas pelas outras mulheres também não o são. Eu não via que, embora tenha escapado dessas ciladas, caí em muitas, muitas outras, porque, num sistema que te cria pra ser cidadã de segunda classe, é isso que vai acontecer, independentemente das “escolhas” individuais. Num sistema de classes, em que você faz parte da classe dominada, e no qual não há possibilidade de mobilidade social, há pouco que você possa fazer pra fugir da subordinação, principalmente se você não enxerga essa característica do sistema, ou melhor, não entende a própria fundamentação desse sistema bipartido. Num sistema que te ensina desde o berço, ou desde a ultrassonografia, a ser obediente, pacata, doce, cuidadora, há muito pouco a fazer pra fugir desses papéis, pois mesmo quem acha que foge, muitas vezes está tão ou mais enterrada neles do que as que nem tentam fugir. Quantas vezes já me deparei com mulheres que acreditam que, por não terem filhos, fugiram do papel de cuidadora, sendo que elas cuidam de tudo e todos a sua volta, menos de si mesmas? Não adianta não ser mãe dos próprios filhos, mas ser mãe de todos!

O feminismo liberal só trouxe conquistas mesmo pra uma classe: os homens. Obviamente, antes que me acusem de mal-agradecida, sei que devo muito às mulheres que lutaram antes de mim, pelo direito ao voto, ao trabalho, ao estudo, senão eu nem saberia escrever pra dizer isso aqui, e também pelo direito a usar calça comprida, cabelo curto, e ter “liberdade” sexual. Mas, tá na hora de ir além, porque esse feminismo superficial só beneficiou os próprios homens. Pra que serve o direito ao voto se, mesmo mulheres sendo 50% do eleitorado, a enorme maioria dos eleitos ainda é de homens? E, principalmente, homens que não pensam em fazer leis pra corrigir as diferenças entre os gêneros na nossa sociedade? De que adianta ter direito a trabalhar, e estudar, se junto vem a dupla (ou tripla) jornada, enquanto os homens continuam com apenas uma jornada, e nem mais a “obrigação” de sustentar a casa têm? De que adianta o direito de trabalhar e estudar, se junto vem a cobrança de ser uma supermulher, e todas as frustrações que acompanham o inevitável fracasso, inclusive o aumento nos problemas de saúde das mulheres? De que adianta a “liberdade” sexual, se ainda somos catalogadas em “pra casar” e “pra diversão”, como objetos que nunca deixamos de ser? De que adianta poder usar a roupa que quisermos, se seremos culpadas pelo próprio estupro, se não estivermos vestidas como “moças de bem”? Pra que serve esse feminismo que muda a superfície, mas não a raiz do problema?

E qual essa raiz? O sistema de gêneros. Hoje entendo que o fim do machismo só acontecerá quando não existirem mais gêneros, quando não existir mais mulher e homem, quando todos formos apenas gente. Quando a primeira pergunta que se fizer a uma mulher grávida não será mais “é menina ou menino” e, consequentemente, não começarão nesse exato momento as imposições sobre os seres que tiveram o “azar” de nascer na classe subordinada dessa sociedade. Não, não sou ingênua de achar que estarei viva pra ver esse dia. Nem mesmo de achar, dada a atual conjuntura, que esse dia algum dia chegará. Mas, não é por isso que deixarei de viver tendo como meta esse ideal, mesmo que, na prática, tenha que me contentar com as migalhas de igualdade que o patriarcado libera aqui e ali pra nos calar, pra não querermos que o feminismo avance em direção ao único fim possível pra misoginia: o fim do sistema de gêneros.


Eu não via. Eu passei a ver. E me tornei feminista radical. E agora não tem mais volta.  

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