Recentemente, publiquei um texto, na verdade, uma tabela, sobre o custo, em tempo e dinheiro, de ser mulher da cabeça aos pés. Mas, o custo é muito maior do que simplesmente quanto gastamos pra performar feminilidade.
Ser feminina, no que se
refere à aparência, é tudo o que falei naquela tabela: cabelo,
pele, depilação, maquiagem, unhas. A enorme maioria das mulheres
segue essas regras, sem jamais parar pra pensar no que está por
trás. Sem pensar que, por trás da depilação, está a sintomática
pedofilia da nossa sociedade. Sem pensar que, por trás do cabelão,
está o fato que é mais fácil dominar fisicamente um ser de cabelos
compridos. Quem nunca viu aquele famoso desenho da mulher das
cavernas sendo puxada pelos cabelos pelo homem das cavernas? Sem
parar pra pensar que, por trás das unhas compridas e feitas, está a
impossibilitação de mulheres desempenharem certas tarefas, com medo
de quebrar as unhas. Sem parar pra pensar que, por trás disso tudo
junto, está a ideia de que mulher serve pra enfeitar o mundo, serve
pro deleite dos olhos masculinos.
Traga-a de volta antes da meia-noite!
Traga-a de volta antes da meia-noite!
Mas, eu não faço nada
disso pelos homens, faço por mim! Tá aí uma falácia que o
feminismo liberal nos empurrou, e em que muita mulher acredita, e que
só favorece aos... homens! A tal da liberdade individual... Assim
que as mulheres começaram a problematizar os rituais de
feminilidade, isso lá nos anos 1970, alguém criou essa ideia de
“não faço pelos outros, faço por mim” pra responder sempre que
a questão da beleza feminina (ou qualquer questão feminina) for
problematizada. Porque, assim, silencia-se (mais uma vez) a mulher
que não só quer ir contra o padrão, mas também quer
problematizá-lo, discuti-lo com outras mulheres. E, assim, tentar
mudá-los. Essa ideia da liberdade individual, liberdade de escolha,
coloca todas as escolhas no limbo social, fora da realidade material,
como se a gente fizesse escolhas apenas por nós mesmas, intrínsecas
ao nosso ser mais íntimo, e não influenciadas o tempo todo pelo
contexto cultural, social e histórico.
Por exemplo, mulheres
começaram a depilar-se, primeiramente nas axilas, quando, na década
de 1940 (muuuuuito recentemente, portanto), começaram a trabalhar
nas fábricas estadunidenses, porque muitos homens estavam na guerra.
As axilas peludas excitavam os operários homens que restaram, que
não conseguiam trabalhar em paz! Coitados! Já não basta roubarem
nossos empregos, ainda querem nos enlouquecer?! Pra ter sossego E POR
IMPOSIÇÃO SOCIAL, as mulheres começaram a depilar as axilas.
Então, você quer me dizer que nenhuma mulher no mundo antes de 1940
pensou em se depilar “por si mesma e não pelos outros” e que a
enorme maioria das mulheres hoje se depila “por si mesma e não
pelos outros”? Antes de 1940, nenhuma mulher jamais pensou em se
depilar apenas pros seus próprios olhos, mas depois de 1940, e
principalmente de 1980 pra cá, quase todas as mulheres se depilam,
ou já se depilaram em alguma fase da vida, apenas “por elas
mesmas”? Eu, pelo menos, comecei aos 12 anos, e não tinha ideia do
que tava fazendo. Era apenas porque todo mundo fazia e eu não seria
a diferente, porque mulher não deve ter pelos e pronto. Porque pelo
é coisa de mulher porca, relaxada, lésbica (!), que nunca vai
casar.
Mas, eu realmente gosto
de (...complete com o ritual que quiser: depilar, me maquiar, ter
cabelo comprido...)! Novamente, assim como escolhas, gostos também
não são apenas pessoais, não vivem no limbo, não saem do nada,
apenas por uma preferência intrínseca e nada mais. Então, nenhuma
mulher gostava de depilação antes de 1940, e agora quase todas
gostam? A enorme maioria dos homens gosta de cabelo comprido. Vai
dizer que esse gosto é apenas pessoal, não tem nada a ver com o
fato de que mulheres de cabelo comprido são mais fáceis de dominar
fisicamente? Não tem nada a ver com o fato de que as mulheres que
aparecem nas páginas das revistas de nu e filmes pornôs, quase
todas, têm cabelo comprido? Não tem nada a ver com uma ideia de
mulher como objeto pra agradar aos olhos dos homens? Enfim, não
existe gosto que não tenha um lado sócio-cultural muito mais forte
que o lado pessoal (que eu não estou negando que exista, mas
acredito que é muito pequeno e impotente).
Mas, na minha
profissão, eu preciso ter essa aparência. Eu até gostaria de
mudar, mas não posso. Agora, estamos chegando a algum lugar. Isso
quer dizer que você já problematizou isso tudo, mas não pode
mudar. Nesse caso, não há muito o que fazer, além de, se isso te
incomodar muito, tentar mudar de emprego/carreira. Mas, isso não é
fácil, exige tempo e dinheiro, e talvez não te incomode tanto.
Aqui, uma sugestão pra mulheres que estejam em cargos de chefia: não
exijam de suas funcionárias que performem esses rituais de
feminilidade, só porque todo mundo exige. Não exija salto alto,
maquiagem, cabelo comprido. Felizmente, sou professora e concursada,
então, estou numa fase da vida e numa área em que, se eu não
estiver suja e fedendo, serei aceitável. Mas, ainda assim, sei muito
bem que os alunos comentam, e muito, sobre a aparência das
professoras. E julgam. E os colegas também. Eu pouco me importo,
porque posso me dar a esse luxo. Sei que não vou perder o emprego.
Mas, muitas de nós não têm essa liberdade. A vocês, minha empatia
e sororidade.
Mas, eu até gostaria
de não fazer certas coisas, mas sou muito insegura. Novamente,
estamos chegando a algum lugar. Se você problematizou a
feminilidade, mas, ainda assim, não se sente segura em mudar, também
vão pra você minha empatia e sororidade. Não é fácil mesmo. Não
é fácil ser apontada na rua. Não é fácil saber que você é
assunto. Pode não parecer, mas eu não gosto de saber que sou
assunto na boca do povo, não por causa da minha aparência ou
comportamento. Não é fácil quando se é bem mais nova que eu. Não
é fácil quando se é negra. Não é fácil quando se tem filhos.
Não é fácil nunca. Eu não tô aqui pra dizer que alguém deve
fazer isso ou aquilo, cagar regra, como dizem. Muitas mulheres se
afastam do feminismo, porque acham que o feminismo quer impor novas
regras pra substituir as antigas. E longe de mim querer ter esse
efeito sobre mulheres. Não estou aqui pra dizer que sou mais
feminista que ninguém, porque não faço mais nada do que está
naquela tabela, embora já tenha feito tudo pelo menos uma vez, e
muitas coisas durante anos e anos. E muito menos tô aqui pra julgar
quem faz, mas pra dizer que é ok não fazer.
Estou aqui pra dizer
apenas que feminilidade deve ser problematizada, sim, mesmo por quem
continua performando-a pelas mais diversas razões. Escolhas e gostos
não nascem do nada, não são apenas decisões do nosso ser interno
ou eu interior ou seja lá qual for a ficção universalizante em que
se acredite. Eu, pessoal e politicamente, decidi parar de performar
feminilidade o máximo que eu posso. Cortei os cabelos. Não depilo
mais. Não uso maquiagem. Não faço mais as unhas, embora ainda as
deixe longas, “porque gosto”. Mas, não dou mais piti quando uma
delas quebra. Pra mim, está sendo ótimo. Economizo um tempo
incrível, economizo muito dinheiro (sempre fui do tipo que comprava
muitos cosméticos, que, às vezes, iam pra lixeira sem terem sido
usados) e, principalmente, economizo muita culpa. Quem me conhece
sabe da minha preguiça macunaímica. Muitas vezes, batia a preguiça
no domingo e eu ia trabalhar na segunda sem fazer as unhas. Mas, não
sem sentir uma culpa enorme. Culpa por ter preferido dormir de tarde,
ou ver TV, ou fazer nada em vez de fazer as unhas. O mesmo pra
sobrancelhas, depilação e maquiagem. Às vezes, eu até pensava
como homens eram sortudos de não se preocuparem com isso, mas nunca
parava pra pensar por quê. Achava que era coisa de mulher, e pronto.
Nada é de mulher e
pronto. Tudo que é coisa “de mulher” surgiu ou foi criado pra
nos dominar, diminuir, atrasar. E a aparência feminina, a
performance de feminilidade, faz parte desse pacote. Então,
performando-a ou não, problematize-a.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirMeu eu, minhas regras. Eu me cuido e me enfeito porque julgo merecer. Mas se alguém me ensinou isso de ser linda, cheirosa e refinada, caraca, só agradeço.
ResponderExcluirTexto muito pertinente. Também venho ao longo do tempo me libertando de performar feminilidade. Me cuido, sou linda, cheirosa e refinada mas graças a Deus não sou mais escrava de produtos e padrões de beleza.
ResponderExcluirMuito bom... também quero essa mudança... estou indo devagar... que bom ter consciência e problematizar!
ResponderExcluirMuito bom o seu texto. Eu faço tudo isso, ainda depilo, faço as unhas (ao menos a dos pés, que odeio de verdade pintar, eu já cortei da minha lista), uso maquiagem, cosméticos... Mas, quando parei pra pensar nas minhas motivações pra isso, passei a me fazer uma pergunta mto útil: quando vc tá lá sozinha em casa, sem planos de sair da toca, sem ngm pra ver, vc faz tudo isso só pra vc? Se a resposta for não acho que vale a pena, ao menos, repensar os motivos e se é seu desejo continuar assim...
ResponderExcluirHoje eu sei que faço pela insegurança em me mostrar pro mundo de outro jeito que não o 'feminino'.